YELLOWJACKETS

WANDERSON LIMA

Edgar Morin[1] ressalta uma dualidade central nas produções da chamada cultura de massa. De um lado, os produtos da cultura massiva precisam agradar, gerar participação e engajamento, seduzir, e para isso tendem a empregar recursos redundantes, de fácil assimilação. De outro, seus criadores, muito frequentemente, querem se afirmar de forma autoral e buscam, portanto, inovar. Do choque entre o consabido e o novo, entre o clichê e a ímpeto inventivo, brotará a obra. E do teor dialético desse choque dependerá a qualidade de tal obra. Se não formos conscientes dessa dialética que está no bojo da cultura de massa iremos cair no erro comum de ou condená-la in totum ou fazer-lhe o louvor passando por cima de sua dimensão redundante, mercantil e, não raras vezes, reacionária.

Desse fato se pode extrair uma característica evidente dos produtos da cultura massiva: sua dupla visada. De um lado, o didatismo, a confirmação dos padrões consagrados; do outro, o subtexto fértil de referências a motivos míticos, intertextos com grandes obras literárias e diálogo com temas filosóficos, teológicos e científicos.

No início dos anos 60 do século XX, Edgar Morin apontou uma tendência da cultura de massa a que denominou “vulgarização ininterrupta”: um romance – ele usa como exemplo O vermelho e o negro – vira um filme aclimatado aos padrões hollywoodianos que, posteriormente, vira uma tirinha publicada em jornal. A cada releitura, testemunha-se uma “condensação agradável e simplificadora” (Morin, 1997). Esta prática de vulgarização, segundo Morin, passa por quatro operações: simplificação, modernização, maniqueização e atualização. A finalidade destas operações seria, em essência, aclimatar as obras da chamada “alta cultura” para o consumo massivo.  Ora, o atual momento da cultura popular audiovisual mostra que esta prática apontada pelo pensador francês, se não foi superada, é bastante marginal, embora ainda paute o imaginário de alguns setores da inteligência acadêmica; hoje, presencia-se  uma tendência de enfraquecimento do didatismo e da vulgarização e o incremento da complexidade narrativa, das referências a outros sistemas de pensamento, além de uma abordagem problemas do mundo contemporâneo fora de uma moldagem simplificadora e esquemática.

Steven Johnson[2] entende que esse aumento da complexidade é, em grande parte, uma resposta às exigências do público, que vai se cansando de enredos triviais, com linhas narrativas limitadas, arco dramáticos óbvios e poucas camadas de significação. Para Johnson, “de acordo com quase todos os critérios usados para medir os benefícios cognitivos da leitura – atenção, memória, capacidade de seguir enredos etc. –, a cultura popular não literária vem se tornando cada vez mais desafiadora nos últimos trinta anos” (Johnson, 2012). Por que esta percepção é menos óbvia do que parece? A resposta talvez esteja em uma frase de Marshall Mcluhan citada por Johnson: ““Quem estuda a mídia logo passa a esperar que, em qualquer período, as novas mídias sejam classificadas como falsas por aqueles que adquiriram os padrões das mídias anteriores, quaisquer que sejam elas”.

Seriados, telenovelas, games, animações e outras produções audiovisuais, para além de serem meros inculcadores de ideologias, promovem uma pedagogia do imaginário que a escola e outras instituições educacionais nem sempre dão a devida atenção. Por meio deles, uma massa diversificada, nem sempre letrada, aprimora a “inteligência visual” (Johnson, 2012), apreende motivos míticos, arquétipos e padrões narrativos da nossa tradição narrativa e entra em contato com os grandes embates de ideias do nosso tempo.

Eis aí alguns dados para entendermos os dois modos de espectorialidade franqueados por Yellowjackets, uma dupla visada que acirra a contradição, vislumbrada por Morin nos produtos da cultura de massa, entre padronização e invenção. Mas comecemos por apresentar a série. Yellowjackets é série criada por Ashley Lyle e Bart Nickerson que estreou em 2021 e possui no momento duas temporadas. Nela, acompanhamos um time escolar de futebol feminino cujo avião cai em uma região remota enquanto viajam para um campeonato nacional. As sobreviventes enfrentam condições extremas e, ao longo de 19 meses, a luta pela sobrevivência leva ao colapso das normas sociais e morais. A série alterna entre duas linhas temporais: 1996 e 2021. Os constantes saltos de uma época a outra mantém o mistério e a tensão, convidando o público a juntar as peças do quebra-cabeça sobre o que realmente aconteceu na floresta. Sem abrir mão de certo didatismo, a série, em montagens paralelas que percorrem passado e presente, vai adicionando dados que rechaçam explicações patologizantes ou místicas sobre o comportamento das personagens. O drama e a dor se intensificam justamente por isso, porque se sabe que ali há pessoas comuns e frágeis como nós mesmos.

A dupla visada da série se elabora numa bifurcação que aponta, por um lado, para um drama adolescente feminino, regado por músicas emblemáticas do rock e pop dos anos de 1990, rostos bonitos e guerra adolescente de sexos.  Esta é a dimensão convencional e sublimadora da série, que se vende em alguns momentos, sobretudo na primeira temporada, como um drama adolescente e flerta com clichês visuais do gênero.  O outro braço dessa bifurcação é mais noturno e soturno. Seu subtexto se alimenta da releitura, em livre adaptação, do romance Senhor das moscas (1954), do prêmio Nobel William Golding[3]. No romance temos uma sociedade de garotos que ficam presos numa ilha; na releitura de Lyle e Nickerson, temos uma sociedade de garotas que ficam presas numa floresta. Em ambos os casos, o espaço (a ilha no romance, a floresta na série) funciona como um microcosmo da sociedade, no qual as normas sociais são desmanteladas e os impulsos mais sombrios emergem. A civilização é vista como uma capa muito fina que, debastada, desvela o monstro que somos e tentamos esconder. Sem as restrições da sociedade, sugerem ambas as obras, as pessoas retornam rapidamente a um estado primitivo e selvagem.

A parte a meu ver mais interessante da série, e que mereceria uma análise demorada, diz respeito à reflexão sobre o papel da religião no processo de enfrentamento do mundo natural e na regulação da violência. Ilhadas na floresta, enfrentando a fome e o medo primal da Natureza, as garotas instituem uma religião sacrificial, na qual a Deusa ou Grande Mãe, estudada em obra clássica de Erich Neumann[4], é tanto a divindade acolhedora como a devoradora impiedosa. A única garota que se opõem a este regresso à religião natural, católica confessa, morre exatamente nos céus (isto é, numa simbólica ascensão espiritual, afastada das forças ctônicas e naturais), tentando pilotar um pequeno avião em busca de ajuda, mas que acaba explodindo. Simbolicamente falando, o sacrifício crístico não redime a comunidade, que emerge cada vez mais nos domínios da Deusa. Ora, retomar uma religião da natureza, embebida de animismo, implica não só a descoberta de um modo de conjurar os poderes da Mãe Natureza, mas também adotar uma nova hierarquia espiritual, que se chocará com a liderança baseada em outras habilidades de sobrevivência, dividindo o grupo.

À medida que o inverno avança e a liderança secular não consegue cumprir com o seu papel de trazer alimento, a liderança religiosa, mediadora das vontades da Grande Mãe, cresce em domínio sobre o grupo. E entre vantagens e desvantagens desse novo domínio, é evidente, na ótica da série, um declínio dos padrões de civilidade e um retorno ao estado de natureza como queda na barbárie. Sob os auspícios da Deusa, o sacrifício regula a ordem do Cosmos e da sociedade, e não demora para, num processo de degradação ou regressão, o canibalismo ser introduzido ali – em parte pela fome, em parte para apaziguar a Grande Mãe e restabelecer o equilíbrio social.

Quando o grupo consegue sair da floresta, as personagens carregam o trauma psíquico da experiência, trauma este, como bem sabia Walter Benjamin[5], impossível de ser narrado e produzir experiência. Assim, as garotas, agora mulheres, retornam à civilização como os soldados alemães, segundo Benjamin, retornaram da Primeira Grande Guerra: silentes, sem um saber partilhável. Fora o trauma inenarrável, elas também precisam abandonar a Deusa e reintroduzir-se na ordem ética antissacrificial e humanista (portanto, contranatural) da cultura patriarcal cristã. Mas, será que a Deusa aceita tal abandono? Que preço pagamos quando a luta pela sobrevivência nos faz regredir ao estado de natureza? A que mundo elas pertencem, ao da floresta ou ao da civilização? A posição das personagens lembra não apenas a dos soldados que retornam da guerra, mas também dos povos colonizados que revolvem morar na metrópole: como apagar a vivência “selvagem” anterior? E por que mesmo apagá-la?

Yelowjackets explora com destemor e sutileza as ambiguidades do feminino, sua face acolhedora e sua face devoradora. A floresta, na série, é um campo de teste que potencializa o caráter inóspito dos desafios que implicam a passagem da puberdade para o mundo adulto. Mas a não-floresta, isto é, o mundo supostamente civilizado, também é uma selva que domestica e tolhe o feminino, exige a superação do trauma sem dar as condições necessárias e, para piorar, muitas vezes transforma essa vivência traumática em espetáculo midiático. Por fim, fora a dificuldade de readaptação, o eco da Grande Mãe colou-se tanto nas memórias conscientes quanto no substrato inconsciente das personagens. Este eco é a rasura e o ruído que impedirão o gozo do que chamaríamos uma vida normal. No fundo, a série é mais pessimista que o romance, que tampouco é otimista, porque parece não haver um lugar de redenção e de paz para as mulheres, nem no seio da natureza nem no meio da civilização falocêntrica e cristã.

Wanderson Lima é professor e escritor. Doutor em Literatura Comparada pela UFRN, estuda as confluências entre mito, literatura e cinema. Publicou, entre outros, Ensaios sobre literatura e cinema (Horizonte, 2019) e a obra poética Palinódia (Elã, 2021). 

[1] MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

[2] JOHNSON, Steven. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

[3] GOLDING, William. Senhor das moscas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014

[4] NEUMANN, Erich. A Grande Mãe: um estudo sobre os arquétipos, os simbolismos e as manifestações femininas do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 2021.

[5] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

ORAÇÃO PARA DESAPARECER, de SOCORRO ACIOLI

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

“Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou”. (p.13) Com essas frases, Socorro Acioli inicia seu romance Oração para desaparecer (Companhia das Letras, 2023) de forma bastante pungente e instigante. As duas primeiras páginas são arrebatadoras e, de imediato, as incluí na minha lista de aberturas de romance que mais me agradaram. Em seguida, pela própria natureza da história a ser contada, a narrativa vai assumindo um caráter mais suave e reflexivo, acompanhando a gradativa maturação necessária à protagonista para recuperar sua força física e, principalmente, sua memória, para que possa redescobrir seu lugar no mundo.

Numa observação superficial, pode-se até supor que, em Oração para desaparecer, a escritora tenha mantido uma pegada um tanto parecida com seu livro anterior, A cabeça do santo. Novamente, uma narrativa pontuada pelo fantástico e desenvolvida a partir de um peculiar acontecimento real ocorrido no interior do Ceará, sua terra natal. Em A cabeça do santo, temos como ponto de partida a escultura de Santo Antônio, com sua gigantesca cabeça separada do corpo, na cidade de Caridade, que, na obra de Socorro, transformou-se na fictícia e abandonada cidade de Candeia. Em Oração para desaparecer, temos como mote inicial a história verídica de uma igreja localizada em Almofala, distrito do município cearense de Itarema, que permaneceu soterrada por muitos anos e depois ressurgiu após o movimento das dunas que a haviam encoberto. No entanto, ainda que ambas as narrativas tenham surgido enlinhavando realidade, fantasia e ficção, são construções estéticas bem distintas em relação ao ritmo e à arquitetura narrativa. As cenas ágeis de A cabeça do santo, que em alguns trechos chegam a lembrar romances de aventura, às vezes contrastam com o tom mais reflexivo e intimista da maioria dos capítulos de Oração para desaparecer.

Socorro Acioli constrói seu romance a partir da história da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que foi soterrada pelas dunas e assim permaneceu, até ressurgir quase cinco décadas depois. De autoria desconhecida, a imagem que consta na parte interna da capa é justamente uma antiga fotografia da fachada da igreja. “Vieram para rezar a última missa, pedir a Deus que evitasse a destruição pela areia e levar as imagens. Há uma foto desse dia. Areia pela metade, as pessoas na porta, marcando o fechamento oficial.” (p.148)

Há uma crônica intitulada Areia e vento, de Carlos Drummond de Andrade, publicada em 1946, sobre a inusitada história da igreja de Almofala. Diversos elementos comentados por Drumond também estão presentes na obra de Acioli. Em depoimento concedido ao Diário do Nordeste, Socorro menciona a crônica de Drummond e sua influência no processo criativo de Oração para desaparecer. “Ele diz que no dia em que o padre Antônio Tomás foi lá tirar as imagens, uma prostituta da cidade, chamada Joana Camelo, jogou um tamanco na cabeça do sacerdote para recuperar a imagem de Nossa Senhora – que, no entendimento dela, era dos Tremembés. Ali eu tinha a personagem. Então consegui pensar na história.

A igreja começou a ser soterrada em 1897. No ano seguinte, foi feita a retirada das imagens e peças de culto, mencionadas na crônica. Há também menção a um pacto de paz não-cumprido com os Tremembés. Além disso, a própria população de Almofala também foi se retirando, aumentando ainda mais a paisagem de abandono, até que, 45 anos depois, o que restava da estrutura de alvenaria da igreja fosse desenterrada pela ação da natureza, sendo posteriormente restaurada.

Além da Almofala no Ceará, há também outra em Portugal e mais outras pelo mundo. E através do fantástico, essas diversas Almofalas podem se entrelaçar por meio da jornada de seus ressurrectos, como são chamados no livro os que ressurgem da terra, como que renascidos da morte, incluindo a protagonista, que ressurge da terra, em Portugal, muitos anos depois de seu desaparecimento no Brasil, despida, sem cabelos, sem memória e ferida. “Eu estava nua, com medo e morrendo de ódio daquela mulher me chamando de rapariga. Um sopro gelado no rosto esfriou as gotas na minha pele e parecia congelar. Ainda não enxergava bem, não ouvia com clareza, achava estranhas aquelas vozes, escutava tudo sem entender nada, delirava sobre morrer.” (p.14)

Talvez um dos maiores desafios de Oração para desaparecer tenha sido construir uma narrativa com diversos capítulos baseados quase que exclusivamente em diálogos, e é dessa forma que vamos conhecendo a vida pregressa da protagonista, Cida, que ressurge em outro continente, onde busca agora reconstruir sua vida. O uso contínuo desses diálogos se coaduna bastante com essa busca, na qual se tenta resgatar o passado através da linguagem, da verbalização. E entre esses fragmentos de passado e presente, encontramos os enlaces de Cida e Jorge, e de Joana e Miguel. Numa correlação de magia, ancestralidade e pertencimento, o livro de Acioli também é uma celebração do amor.

Penso que a autora poderia ter explorado mais a capacidade de clarividência da protagonista, sua capacidade de ver e ouvir pessoas já falecidas. Muitos desdobramentos disso poderiam ter sido explorados. Assim como alguns vaticínios em relação aos ressurrectos, incluindo a afirmação de que Cida seria a última e a primeira mulher. Mas os mistérios e as perguntas sem respostas também fazer parte da narrativa.

Curiosamente, é mencionado que a oração para desaparecer de fato existe, entre os Tremembés, mas não é a que foi publicada no livro de Socorro Acioli, este que, pela competência de sua escrita, não há de desaparecer.

Referências

ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

_________. Oração para desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

BARBOSA, Diego. “Oração para desaparecer”: Novo livro de Socorro Acioli é carta de amor à Almofala, Ceará e Portugal. In Diário do Nordeste, 09 de dezembro de 2023. Disponível em https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/oracao-para-desaparecer-novo-livro-de-socorro-acioli-e-carta-de-amor-a-almofala-ceara-e-portugal-1.3453544. Acesso em 25 de maio de 24.

2 poemas de KÁTIA BORGES

para mim
ainda ontem era estrada,
sem placas indicando onde,
sem hotéis, camas confortáveis.

ainda ontem era margem,
polegar estendido no escuro,
esperando pela passagem
ao que seria o futuro.

talvez pequena cidade
que acende dentro da noite,
como alguém abre os braços
e nos estreitamos dentro,

como uma casa que acolhe,
quando de esguelha nos olha,
jogando a chave lá fora,
dizendo em silêncio entre.

 

 


que Saara nos dirá
se há verdades?
entre Macondo e Pasárgada,
duas cidades.

como pontos que no mapa
erguem miragens,
como opostos que do não,
no epicentro do vulcão,
forjam paisagens.

como pontas dum lençol
no vendaval
que jamais se encontrarão,
como ases num baralho
fogem às mãos.

entre Bauci e Santa Fé,
duas cidades,
e cidades são miragens
do são.

 

 

Kátia Borges é autora dos livros De volta à caixa de abelhas (As letras da Bahia, 2002), Uma balada para Janis (P55, 2009), Ticket Zen (Escrituras, 2010), Escorpião Amarelo (P55, 2012), São Selvagem (P55, 2014), O exercício da distração (Penalux, 2017), A teoria da felicidade (Patuá, 2020), Tudo será daqui pra frente (Patuá, 2022) e Dias amenos (Organismo/Segundo Selo, 2023). Teve alguns de seus poemas incluídos nas coletâneas Roteiro da Poesia Brasileira, anos 2000 (Global, 2009), Traversée d’Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Éditions Lanore, 2012), Autores Baianos, um Panorama (P55, 2013) e na Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Rewiew, 2013).

2 poemas de ADRI ALEIXO

AS PEQUENAS CASAS DA VILA

Na vida é preciso envergadura
o poema procura a moça
como o sol procura aquela casa
na vida, a gente é casa
e é preciso acabar-se
só e sólido
antes da partida

SERRA DA BOCAINA

É véspera de Natal
e pergunto se posso acreditar
na esperança discreta

É bem alto, Senhor
o monte
este trecho da Serra do Mar
um vale
em que se preservam araucárias

estás sob a luz de uma paineira
tua mão inunda o poema
como quando inunda minhas pernas

O amor deu a volta ao mundo
chamando-me aos caminhos para o alto
colou meu nome à tua boca

Deve ser assim o que renasce
enorme
entre três mundos

Adri Aleixo, nascida em Conselheiro Lafaiete(MG), residente em Belo Horizonte(MG), publicou Des.caminhos (2014) e Pés (2016), ambos pela editora Patuá. Em 2019, publicou Das muitas formas de dizer o tempo, pela editora Ramalhete. É professora de Linguagens e doutoranda em Literatura pelo CEFET-MG. Poemas da autora podem ser encontrados em vários sites e revistas literárias.

2 poemas de GLÓRIA SOFIA

MÃOS

As minhas mãos são espinhos
São pétalas da azorina com lascas
De cristais
As minhas mãos são reinos renegados
Pelo orgulho de mãe, fervem a pintura
Debaixo da pele
As minhas mãos incrêem em sangue
O líquido
Que me calcina as artérias
E amortece o som da união
As minhas mãos renunciam a sepultura dos irmãos
São as mãos que desejam
Que o seu cadáver apodrece
No sepulcro dos forasteiros
Esses estranhos que não
Resgatam a injustiça
As minhas mãos atulhadas com os anjos
Partidas sem conserto
Ainda queres as minhas mãos?!

 

SOU MALDITA

Fui uma bebé presa nas entranhas
Entranhas com paredes de orgulho
Sonhando com o depois das montanhas
Fui a criança presa num sorriso
Um sorriso monstruoso de ilusão
Amando com mágoa a sua prisão

Fui uma adolescente presa pelos sonhos
Sonhos triturados pelos teus pés risonhos
Vivendo idolatrada pelo delírio da entrega
Fui uma mãe presa pela melancolia
De gerar crianças mortas de nostalgia
E parir monstros de palavras

 

Glória Sofia (Cabo Verde, 1985). Poeta. Autora de cinco livros, distinguida com o Prémio Unión Mundial de Poetas por la Paz Y la Libertad (UMPPL). Além de poeta, ela é formada em Engenharia e Gestão do Ambiente. Atualmente reside na Holanda, de onde nos escreveu enviando seus poemas. A autora também tem marcado presença no Festival Internacional de Poesia, evento que já a levou até à Roménia (2016), Turquia (2017) e Macedônia/Albânia (2018). Nascida na cidade da Praia, “no dia dedicado ao amor e aos
enamorados”, Glória conta que é fascinada pela escrita desde a infância.

ÁFRICA-MÃE

 

ELIO FERREIRA

1

África-Mãe do primeiro AMOR,
África-Mãe do primeiro DEUS,
África-Mãe da primeira MULHER,
África-Mãe do primeiro HOMEM,
África-Mãe de todos os POVOS,
África-Mãe da RAÇA HUMANA.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
ele era o rei,
ela era a rainha,
um outro súdito.
Um era sacerdote e curandeiro,
o outro guerreiro.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era cirurgião, o outro inventor
e ferreiro,
um outro poeta, cantor
e alabê.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era mineiro, o outro babalorixá,
um outro alufá.
Um era lavrador e vaqueiro,
o outro oleiro.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
uma era professora, a outra flandreira,
uma outra costureira.
Uma era rendeira, a outra doméstica
e comerciante.

O meu avô e a minha avó
viviam felizes na África:
um era marinheiro, o outro advogado
e historiador.
Um era carpinteiro e pedreiro,
o outro construtor.

O meu avô e a minha avó
construíram as Américas,
O meu avô e a minha avó
construíram o Brasil.

2

O meu avô e a minha avó
foram escravizados na Europa,
e a Europa ficou rica,
e os ricos da Europa ficaram + ricos.

O meu avô e a minha avó
foram escravizados nas Américas,
e os colonos das Américas ficaram ricos,
e os filhos,
e os netos,
e os tataranetos
dos colonos ricos das Américas ficaram + ricos
+ podres-de-rico
+ podres.

O meu avô e a minha avó
construíram as Américas,
o meu avô e a minha avó

construíram o Brasil.

 

Elio Ferreira (Floriano, PI, 1955 – Teresina, PI, 2024) Poeta, capoerista e rapper. B.Boy do Movimento Hip-Hop no Piauí. Professor de literatura na Universidade Estadual do Piauí. Publicou, dentre outros,  Canto sem viola (1983); Poemartelos (1986); O contra-lei (1994).

 

2 poemas de LAU SIQUEIRA

JÁ NÃO HÁ PAREDES MIGRANDO NA TUA
AUSÊNCIA…

Quando arranquei
teus olhos da parede
perdi as unhas.

Perdi o olfato
arranhando memórias
.        ……    .do teu cheiro.

Perdi a pele dos dedos
e senti os ossos raspando
as janelas do desencanto.

Já havia perdido a razão
exata de todas as certezas.

Era dor, mas
também libertação.

O cerco do teu olhar
vigiava a minha sede.

Dedos sem carne
alguma. Coração
fugindo pela boca.

‘Coloquei teus olhos
sobre a mesa e decidi
guardá-los na distância.

Não furei as pálpebras
nem salguei a íris.

Deixei as lágrimas
secando na sombra
solene dos dias…

Mirei de frente aquele
imenso desapego.

Fiquei só.

Sem unhas, sem a pele
descarnada dos dedos.

Falanges esquecidas
sem o sangue apodrecido
da despedida.

OS ERÊS DE GAZA

As crianças de Gaza
não brincam mais.

Não comem mais.
Não dormem mais.

Vivem no martírio
da próxima explosão.

Quem sabe os passos
de um soldado com
olhos de extermínio.

Um rio de sangue
corta o deserto,
singrando lágrimas
mediterrâneas…

Há um silêncio
de morte que
o mundo não
escuta.

LAU SIQUEIRA nasceu em Jaguarão, no Rio Grande do Sul e reside há décadas na Paraíba. Publicou dez livros de poemas e participou de diversas antologias no Brasil e no exterior. Possui diversas parcerias musicais e é autor juntamente com o músico e amigo Paulo Ró do álbum Quarta Capa. Escreve sobre arte, cultura e literatura em portais, jornais e revistas.

2 poemas de SÍLVIA SAES

A FLORICULTURA

a porta abre para o ar condicionado de uma galeria com folhagens
e flores ordenadas em estantes de vidro dos dois lados

aquele não-sei-quê que sempre se busca, aquele vivo frescor
das flores, ali não deixou rastro

na floricultura nada se mexe ondeia ou esvoaça, tudo jaz em
cor estagnada

ao fundo atrás da bancada de xaxins e buquês embalados,
o dono da loja completa o quadro:

luz fria sobre as faces pálidas, seu corpo é vulto extenuado no
chumaço de um tempo sombrio

não é dia nem noite, na floricultura tudo mergulha em
comprida madrugada

as rosas exalam a fragrância dos velórios

o dono da floricultura, insepulto das horas, planeja enterrar-se
nas pétalas antes da aurora

GOTAS

colecionarei gotas
fixarei seu mágico e rotundo brilho
quando não cabem mais em si
tão preenchidas de si mesmas
no indevassável núcleo
onde sorvem o vácuo
em vertiginoso giro
antes de escorrerem pelo vidro embaçado do box
gotas infensas ao fio das facas
saboreio o nome: gota
e penso nas espécies de gotas
de chuva, de suor, de sangue
de orvalho sobre as gotas de lágrimas
gotas do tempo no soro do conta-gotas
inesperados declives na curva
dos lábios
a menor parte da gota é gota
uma gota abraça todas as outras dentro dela
cada gota é uma boca
cada instante uma face
quantas bocas falam pela sua boca
quantas pernas andam pelas suas pernas
quantos olhos veem pelos seus olhos
e você some em espiral profunda
antes que eu alcance a pergunta
que suas mãos me fazem
colecionarei gotas
antes que partam as embarcações
sob a chuva fina
o que me ocupa tem asas
o que me ocupa tem pés
o meu corpo tem um corpo
que não cabe
tenho mãos que agem
dentro das mãos
quantas mãos se escondem nas asas
os peixes saltam das margens
das gotas
quantos bichos estão na minha carne
quantos nela esperam ofegantes
o próximo salto
quantos corpos no meu corpo
quanto do meu corpo no seu
pássaros inquietos percorrem
meu sangue
quantas gotas de mel
abrem as comportas
do seu nome


Sílvia Faustino de Assis Saes é professora de Filosofia na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA), autora de livros e artigos sobre Filosofia da Linguagem e Estética. Notas totais sobre partículas é o seu primeiro livro de poesia.

2 poemas de SAMUEL MARINHO

OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

escrevo no meu caderno
só pra tatear a página ao lado
o destino de todo moderno
é ser ultra
passado

HIERÓGLIFOS DO FUTURO

A forma das cidades muda mais rápido,
bem mais, que um coração mortal
Baudelaire, “O Cisne”

eis aqui
gravado em alguma parte
a primeira metade da arte
o transitório
o contingente
o ilusório
a efêmera
ultramodernidade
(o que para alguns seria
mero objeto de descarte)

a outra metade
a meta da arte
o imutável
o absoluto
o infindável
a glória
a encantar-te
não caberia sequer
no segundo encarte

é desde a antiguidade
uma questão
de vida ou morte

luta corporal incessante
de reter o poético no histórico
de extrair o perene do instante

o que os antigos modernos
chamariam de eternidade

Samuel Marinho (São Luís/MA, 1979) é poeta, autor dos livros Pequenos poemas sobre
grandes amores (2002), Poemas in outdoors (2018), Poemas de última geração
(2019, finalista do Prêmio Jabuti de 2020), Fotografias para perfis fakes (2021) e
Antiquário Moderno (2023). Os poemas selecionados são do livro Antiquário Moderno (Penalux, 2023).

2 poemas de HERMES COÊLHO

.

não houve resgate quando fui violado
as escaras da alma não pude curar
deixei-me deitar no campo de sonhos
refugiei-me neles sequei o pranto
cipó que usei para me salvar
a cada quimera desfeita eu descia um pouco
rumo à floresta densa pavores turvos
e descobri um novo mundo
no meio da fauna e flora multicolor
vivi amores calei rumores me permiti
dancei com indígenas nus na aldeia
fiz amor com botos sob a lua cheia
transformei minha dor em frenesi

a seca da cidade é meu lençol
envolve a pele em ondas
cicatriza as feridas da labuta
e dos esforços ocos dos dias
aceito o açoite do cerrado
deixo meu corpo marcado
alma vagando vazia

Hermes Coêlho nasceu em Teresina, Piauí, em 1977. Reporter e editor da TV Senado, em Brasília. Autor de Nu (poemas, 2002) e Violado (2023, poemas). Os poemas aqui publicados fazem parte do livro Violado (Editora Patuá).