AS PERSONAGENS QUE VIVEM…

HERASMO BRAGA

Para Iara…

Não há qualquer segredo ao se afirmar que em grandes narrativas a presença de personagens fortes é evidente, do contrário, diante de personagens fracas não há como viabilizar narrativas relevantes. Foi-se o tempo das abordagens literárias restringirem-se a detectar a presença ou não dos seus elementos principais como espaço, tempo, personagens e, obviamente, o mote da história. E a partir daí promover classificações superficiais. No ponto relacionado às personagens, a pluralidade de análises parte das observações em torno das suas subjetividades e do quanto elas são ou não densas ao ponto de portarem-se para além da narrativa na qual ela se encontra envolvida, de elas exercerem fortes influências em personagens de outros enredos e até mesmo marcarem autores distintos daquele que as concebeu em primeiro momento. Os exemplos são inúmeros, como Dom Quixote, Fausto, Marcel, todavia, os olhares agora estarão voltados para Emma Bovary e Ísis.

As figuras femininas como Emma, que compõe o primoroso romance Madame Bovary de Gustave Flaubert, e Ísis, uma das protagonistas de outra grande narrativa de Raimundo Carrero, Somos pedras que se consomem, exercem pleno fascínio e influência diante daqueles que interagem por meio das suas subjetividades e realizam uma conexão formativa, apicaçando sentimentos guardados e encorajando seus leitores a vivenciar sua plenitude. Ingênuo ainda quem concebe a personagem como algo restrito somente a uma trama, formulada pela imaginação de um autor, e apenas contribui para o desenvolvimento da narrativa. Inicialmente, as melhores personagens são sínteses de sujeitos reais, representados nos pontos mais significativos não só para a história em progresso, como também para o despertar e entendimento dos próprios indivíduos em sua maior intimidade. Assim, não constitui qualquer exagero ou mesmo delírio quando autores consagrados como Mário Vargas Llosa, em entrevistas e produções críticas, sempre eleva Emma Bovary como a personagem cravada em seu ser. Não há dúvida alguma no que se pode denominar de “arquétipo de Emma Bovary” fazer-se presente em inúmeros traços em personagens dos textos ficcionais de Llosa, a exemplo de Lily do seu fascinante romance Travessuras da menina má.

Esse embevecimento ocorre não por mera influência literária ou por mera explicação de estilo. A perpetuação advém pelo “encontro de almas” entre personagem e leitor. Isso sempre foi possível, desde o século IV a.C., quando Aristóteles já apontava em seus estudos sobre a tragédia, condensada em A Poética. Para ele, imitar é algo inerente ao ser humano. Diante disso, não se deve entender no sentido delimitado apenas ao homem enquanto ser real, mas a qualquer elemento que produza representações como as personagens. Em A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary, em que Mário Vargas Llosa lança aos estudos acerca da escrita de Flaubert, ele se dedica mais na abordagem de Emma Bovary nos mais interessantes pontos que justificam a sua grande e influência não só em outros personagens, como também, em autores como ele. Desta, nas primeiras páginas: “[…] têm a ver com algo que ela e eu temos muito em comum: nosso incurável materialismo, nossa predileção pelos prazeres do corpo sobre os da alma, nosso respeito pelos sentidos e pelo instinto, nossa preferência por esta vida terrena diante de qualquer outra”. Essa convergência em intimidades não advém de mera convenção, mas algo que arrebata em todos aqueles ao perceber as inquietações de Emma em nunca se conformar em apenas reproduzir homogeneidades de vidas oriundas das limitações interioranas em que as subjetividades são suprimidas em prol das estabilidades sociais, mesmo de uma vida superficial, mas aparentemente tranquila. A personagem Emma deseja lançar-se em diversos mundos, ampliar as experiências perceptivas de pessoas, situações, lugares, expandir-se além de Yonville.

Esse desejo inicial desperto de maneira romântica das obras que costumava ler com alvoroço desde tenra idade, serviu como posteriores necessidades, impulsionadas pelos desejos que não lhe permitiam empobrecer-se de experiências e, sim, buscar cada vez mais com intensidade. No mesmo nível de fascínio e pela veemência se encontra em Ísis que “preferia sangrar para não ter que se unir ao tédio e à náusea”, e assim “Eis o que amava: a aventura do mundo”. Ísis, como Llosa, acolhia em Emma o seu “encontro de almas”, não à toa que sempre sugeria aos próximos a leitura de Madame Bovary. Em busca dos prazeres que o mundo oferecia, Emma e Ísis se igualavam, todavia, por serem separadas temporalmente, Ísis ousava mais e pouco caso fazia para as convenções. Destarte, lançava-se a encontros em que a intensidade do momento e o esquecimento deles depois estavam no mesmo átimo. Não poderia ser diferente considerá-la como o narrador faz: “Ísis e a fome sexual dos trópicos, quente e latejante, amada e esquecida…” De fato, “Ísis é uma mulher de muitos prazeres…”. Ísis em nada se submetia, nada a limitava ou a tornava padronizada em características. Ela sempre era muitas em si e para si.

Em sua abordagem, Mário Vargas Llosa dedica a Emma o seguinte: “O heroísmo, a audácia, a prodigalidade, a liberdade são, aparentemente, prerrogativas masculinas; no entanto, Emma descobre que os varões que a rodeiam – Charles, Léon, Rodolphe – se tornam brandos, covardes, medíocres e escravos, apenas ela assume uma atitude “masculina” (a única que lhe permite romper a escravidão a que estão condenadas as pessoas de seu sexo na realidade fictício)”. Se fosse feita a mesma observação para Ísis, em nada mudaria, com base na mesma postura feminina de imposição dos seus desejos, vontades e realizações.

Assim, são personagens como essas que vivem nas subjetividades leitoras e as transformam, diante do despertar para a vida, nos mais diferentes mundos, em prol de experiências que superam as angústias e tédios do cotidiano hodierno.

Herasmo Braga é professor e ensaísta

AS PERSONAGENS E OS LIVROS

HERASMO BRAGA

Quem realiza leituras sabe quão transformador é o seu valor, tanto da parte de quem lê, como dos que apenas as contemplam. Mesmo quando limitada a textos meramente informativos, a leitura em algum momento provocará desconforto e um mínimo de estranheza diante da realidade. Essa percepção pode ser constatada não apenas nos indivíduos, mas também nos personagens leitores. Isso ocorre por conta das mudanças das subjetividades tanto nos sujeitos reais quanto nos ficcionais.

Reconhece-se que a ação que mais o ser humano realiza está relacionada diretamente com a interpretação. Ao se relacionar, observar, sentir, pensar, projetar, a atividade interpretativa estará não só vigente, como também acontecendo o tempo todo. Diante desse aspecto, ao atentar-se para a imprescindibilidade interpretativa do ser humano, deve-se autoquestionar acerca da qualidade dela. Dessa forma, está diretamente associada, ou seja, quanto melhor e maior for a qualidade de interpretação do sujeito, consequentemente, a vida dele acompanhará esses passos somativos. No sentido contrário, também; a precariedade de viver será a tônica. Isso ocorre pelo fato de a capacidade interpretativa estar vinculada à subjetividade dos seres. Quanto mais significativa for a interpretação, maior será a expansão das subjetividades, e, portanto, os ganhos valorativos.

O elo que une os pontos entre qualidade interpretativa, vida e subjetividades reside na expressividade dos textos literários. Aqueles dotados de maior profundidade de expressão irão promover as distensões interpretativas e ampliação de subjetividades. Essa tese pode ser demonstrável sem dificuldades nos próprios ganhos que as personagens recebem nas suas subjetividades e as transformam em meio as suas vidas ficcionais. Ao se destacar os olhos de ressaca de Capitu, importa evidenciar, como descrito pelo próprio Bentinho, o quanto ela fora uma grande leitora na infância e adolescência. Da mesma maneira, outra personagem marcante da literatura, Emma Bovary, que, ao não aceitar ter uma vida burocrática ao lado do seu marido Charles ou Carlos, a depender da tradução, desenvolve essa renúncia de ser mulher submissa, entregue apenas às questões do lar e da criação de filhos, as leituras que constantemente realizava e mesmo sendo de romances idealizados com níveis de superficialidades, despertava-lhe a sede de viver aquela intensidade de sentimentos que ele encontrava nos livros, ampliando os efeitos imaginativos. Com base nesses registros, consegue-se entender quando Leyla Perrone-Moisés, em um dos seus textos denominado “Ensino de Literatura”, enuncia entre outras coisas que: “a literatura é um instrumento de conhecimento do outro e de autoconhecimento, porque a ficção, ao mesmo tempo em que ilumina a realidade, mostra que outras realidades são possíveis”. Essas são algumas das chaves das potencialidades e riquezas na ação efetiva de conhecer o outro, ao tempo que se autoconhece, diante de uma realidade mediada pelo texto ficcional, ilumina não só uma dada realidade, mas diversas outras possíveis como deveras percebeu Capitu ao ser tão enigmática para Bentinho, e Emma tão ousada no enfrentamento de toda uma sociedade moralista de plena limitação dos desejos femininos.

Outro personagem que goza de formação cultural diferenciada e, a partir da leitura de uma obra, disponibiliza-se a ter o que antes seria apenas ideias e agora sente a coragem de exercer uma vida plena hedonista é Dorian Gray, personagem do romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray. Diante da história lida em que admira o personagem: “O herói, o magnífico jovem parisiense em quem os temperamentos romântico e científico se mesclavam de modo estranho, tornou-se para ele uma espécie de protótipo de si mesmo. E, de fato, o livro todo parecia conter a história de sua própria vida, escrita antes que ele a tivesse vivido”. Destarte, Dorian tomado pelo impulso motivador, transforma-se radicalmente ao ponto de também ter todas as vivências possíveis, como de fato, efetivou. E como descreve o narrador: “Durante anos Dorian Gray não conseguiu se livrar da influência do livro. Ou talvez fosse mais apropriado dizer que ele nunca tentou se livrar dela”. Esse despertar e transformação de vida de Dorian Gray demonstra a vitalidade de como a leitura incide sobre as subjetividades dos sujeitos, muitas vezes, quando se é permitido, de maneira arrebatadora, proporcionando novas formas de vivências antes experenciadas nas leituras, assimiladas nas subjetividades e depois por meio das ações reconfiguradas, como expressa Paul Ricoeur em sua abordagem sobre mimeses III, que elevam a novas formas de vida antes restritas nas leituras agora investidas em suas vidas. Sejam das personagens, sejam dos seres reais.

Essa incursão inquietante, quando em meio às narrativas se deparam com narradores ficcionais, lançarem-se em despertar promovido por personagens, significa muito mais do que apenas uma revelação da complexidade e amplitude que os textos ficcionais provocam. Observa-se nas passagens de No Caminho de Shaww, de Marcel Proust, a seguinte menção em torno dessas assertivas: “Depois desta crença central que, durante a leitura, executava movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade, vinham as emoções que me dava a ação na qual tomava parte, pois as tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Eram os acontecimentos que ocorriam no livro que estava lendo; é verdade que as personagens a quem interessavam não eram ‘reais’, como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou a desgraça de uma personagem real só ocorrem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou dessa desgraça; a engenhosidade do primeiro romancista consistiu em compreender que, no aparelho das nossas emoções, sendo a imagem o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, em grande parte só o percebemos através dos sentidos, isto é, permanece opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não consegue erguer”. Esse olhar diferenciado a partir do olhar da personagem que sofre modificações e vivencia experiências por meio de outras personagens das histórias que ele lê e por meio da sua elevação, também, os sujeitos leitores que se encontram em orientação desse olhar proporcionalmente alçam suas performances perceptivas. Tensões emocionais sentidas nas leituras, muito mais do que em inúmeras vidas inteiras, são modificadoras do sujeito leitor, personagem da intriga e também do sujeito leitor real. Aguçam-se as sensações e se distanciam das limitações e superficialidades da vida comum, preenchendo o que é desprovido de vida, recheando de intensidades formativas que elencam o espírito.

Interessante que essa dimensionalidade de ampliação do espírito pelo exercício do desenvolvimento formativo, acontece, conforme Goethe em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, porque lançar-se no mundo ficcional, como bem expressa até então conhecido personagem eclesiástico em diálogo com Wilhelm, “é o melhor meio de arrancar os homens de si mesmos e trazê-los de volta por um desvio”. Então, é sair do mundo ordinário e imergir em outro das personagens que se encontram diante dos olhos e lhes tocam o espírito. Em momento posterior, Wilhelm Meister, ao refletir sobre o ganho significativo dessa jornada constitutiva, expressa-se ao amigo e agora cunhado Werner, em uma carta acerca dessa constante busca formativa por meio das experiências, principalmente as despertadas e vivenciadas ficcionalmente como nas peças teatrais e textos poéticos aos quais ele se dedica inteiramente nas leituras: “Para dizer-te em uma palavra: formar-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância. Ainda conservo essa disposição, com a diferença de que agora vislumbro com mais clareza os meios que me permitirão realizá-los. Tenho visto mais mundo que tu crês, e dele me tenho servido melhor que tu imaginas”. Destarte, nas confluências dos olhares entre leitor e personagens, personagens leitores acerca de seus personagens, são elaboradas e reelaboradas formas e concepções transformadoras tanto dos personagens em seus enredos, quanto dos sujeitos leitores, e ambos se desenvolvem e se diferenciam nas suas subjetividades no mundo da coexistência entre ficção e realidade.

Como bem enuncia Antonio Candido em sua obra Textos de Intervenção, que a literatura “exprime o homem e depois atua na própria formação do homem”. Assim, diante dessas circularidades formativas entre leitores e personagens, percebe-se a clareza da afirmação de Candido.

Herasmo Braga é professor e ensaísta