À LUZ DE VELA

LÍLIAN ALMEIDA

Faltou luz. A energia caiu depois da ventania. Tinha muito trabalho pela frente. A cabeça ainda elétrica. Sem luz, restava pouco a fazer. Aguardar. Dias antes, no mercadinho, olhei para as velas, ao lado das caixas de fósforo que peguei, e pensei que não precisaria delas. Sabedoria não falha no tempo das coisas. O momento das velas chegou e não as tinha. Certo assim!

A janela aberta para alguma claridade da noite de lua, coberta de nuvens, deixava o quarto um pouco menos escuro. A bateria do celular em 15% seria preservada para uma real necessidade. Os pratos na pia, as roupas para guardar em cima da cama, o feijão a catar, tudo teria que aguardar a luz. Fazer o quê? Deitei. Cogitei sobre o tempo necessário para restabelecer o serviço de energia elétrica. Quando voltasse teria isso e aquilo para fazer. Agora, nada não. Lembrei que poderia respirar. Seria uma maneira de relaxar, descansar para quando pudesse voltar ao trabalho.

A vizinha certamente divisou pela janela o breu do lado de cá e gritou se precisava de vela. Aceitei. Agora alguma luz dava espaço para guardar as roupas, tomar banho. Os pratos e o feijão ficariam para quando tivesse mais luz para discernir o bom do ruim, o feito do mal feito.

Luz de vela pede história. Era assim desde a infância no subúrbio precário em que cresci, nas muitas vezes em que faltava energia elétrica. Recordei que ficávamos em casa sob a luz tremeluzente da chama das velas, contando histórias de lobisomem, assombração, ou desenhando, com as mãos, sombras na parede. Às vezes a chama provocava um vulto e era o suficiente para alguém gritar e assustar todo mundo.

Agora era só eu no quarto, não tinha os primos, a avó ou os pais para contar causos. Olhei para o livro, na mesa de cabeceira, que avançava um capítulo por dia antes de dormir. Na adolescência, a mãe reclamava quando, nessas noites de escuro, eu levava a vela para cima da mesa, trazia um livro pra perto e lia as páginas amareladas pela chama da vela por horas a fio. Estraga as vistas, dizia. E ainda tinha o risco de botar fogo no livro, na mesa e, na dramaticidade da mãe, na casa inteira. Mesmo com o temor agravado pelas sentenças maternas, eu não deixava de ler à luz de velas.

Tomei o livro como fazia antes, posicionei a vela um pouco mais alto, acima de mim, para clarear bem. Com a experiência da adolescência aprendi que colocar a vela mais alta gera maior expansão da luminosidade. É preciso também sentar próximo, pois à medida que a luz se espraia perde força, brilho. Carecia de óculos para percorrer as letras. Demorou um pouco para as retinas se adaptarem, mas consegui dar ritmo e fluxo à leitura.

Desvendava a fuga de uma das personagens e a orfandade de outra, a irmã, que se agarraria à terra como a uma mãe. A terra enchia de significado a vida naqueles sertões. Coisa que a escola local ignorava, cheia de palavras estranhas, homens e histórias longínquas, alheias. Era o coração da terra que a irmã escutava quando deitava para cheirar a umidade do chão depois da chuva. Não podia sentir o mesmo com os cadernos. As horas iam no ritmo da leitura e das pausas que eu fazia para preencher as cenas com meu próprio repertório de vivências. Esqueci da vela. Lia como se estivesse junto com as irmãs separadas, solidárias à solidão de cada uma delas. Toda a ambiência era propícia à confluência entre as nossas vidas.

Agora chovia. Prestei atenção ao barulho da chuva no telhado e agucei o olfato para o cheiro da terra. Um clarão piscou, depois se manteve acendido. Lá fora, gritos alegres. Os eletrodomésticos emitiam ruídos como se voltassem à vida, a funcionar. O quarto agora estava iluminado pela lâmpada. A vela sobrava. Alguma magia desfez-se. Eu olhava a placidez da chama, adivinhava o cheiro do fim. Soprei. Um fio de fumaça dançou no contraste com a janela aberta. Sentada, inalei o cheiro de parafina como se mantivesse iluminada, dentro de mim, a infância.

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Lílian Almeida é professora adjunta na Universidade do Estado da Bahia. Tem publicações em portais literários, revistas digitais e antologias. Participa de eventos literários no Brasil e em outros países. Foi uma das curadoras do I Encontro de Autoras Baianas. Publicou Todas as cartas de amor (prosa, 2014) e Pulsares (poesia, 2019, Prêmio Caramurê de Literatura).