TÁRTARO

J.L. ROCHA DO NASCIMENTO

– No portal do inferno, Hades organiza a fila:
– Genocida?
– Falando comigo?
– Sim. Você não é aquele que disse?
– Sim, sou seu mesmo.
– Certo, os dados conferem.
– O que houve com o seu rosto?
– Excesso de exposição ao…
– Poupe-me dos detalhes, sei do que se trata.
– Qual a fila?
– Primeira à direita. Em seguida, siga em frente. No final você encontrará Caronte, que o aguarda na margem do rio. E não esqueça: as três moedas não podem ser falsas.

João Luiz Rocha do Nascimento (Oeiras, PI, 1959) é escritor, professor e magistrado. Mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos-RS. Autor, dentre outros, de Os pés descalços de Ava Gardner (contos, 2020) e Na caverna de Platão (contos, 2023).

ADHJAMBO

NATAN CAMPOS

Aos cento e dois anos de idade Adhjambo ainda azeitava os gonzos de seus quadris para abrir as portas de suas carnes e dar à luz do mundo mais um filho. Já eram tantos que os nomes tinham que se repetir e nunca era possível que estivessem todos perto dela. Muitos foram embora para nunca mais, por vontade própria ou levados pela de outros, mas outros muitos ficavam ali na terra que os viu nascer, esperando o dia em que deveriam voltar ao útero de Adhjambo.

De todos os filhos que viviam espalhados pelas várias aldeias e pelas grandes cidades, nenhum conseguiu convencer a mãe a deixar de morar debaixo do imenso baobá que podia ser visto a quilômetros de distância. À sombra daquela árvore era que ela tinha parido o primeiro rebento e era onde haveria de gerar o último, que de alguma forma ela sabia que deveria ser tirado de dentro de suas entranhas por outras portas, abertas a ferro, quando ela já não pudesse mais. Era também ali que enterrava cada um dos seus que não resistiam ao tempo. O imenso baobá protegeria suas almas.

Um dia Abeba, tataraneta de seis anos, sonhou por que a velha morava ali e foi sentar-se ao lado dela. Adhjambo regou sua cabecinha com algumas lágrimas e soube que podia morrer em paz outra vez. Depois de tantas vidas, mal se lembrava de quando tinha plantado aquele baobá de quase seis mil anos.

Natan Campos é o nome literário de Natanilson Pereira, autor maranhense de contos, cordéis, romances e sonetos. Participou de grupos literários como Curare e Carranca na década de noventa e atualmente dedica-se também à música. Tem publicado pela Penalux o livro de sonetos A Ilha Naufragada.

OLHOS ARREPIADOS DE BREU

THAINÁ CARVALHO

As manhãs estão cada vez mais escuras
e assombrosas,
as roupas não secam no varal
e as árvores balançam
loucamente,
não sei se em dança
ou em aviso.
As manhãs estão cada vez mais escuras
nesse mundo bravio,
as ondas atingem já tantas alturas
que se confundem em nuvens,
as pessoas observam e aguardam
metade temor, metade expectativa
o naufrágio íntimo de suas vidas
em tragédia absoluta.
As manhãs estão cada vez mais escuras
uma tempestade que nunca chega
paira sobre nossas cabeças
gigante e ameaçadora
odisseia homérica
que nunca se encerra
e nossos olhos
(acostumados à crescente escuridão)
já não inventam monstros
nem choram desterros,
mas como há sobrevivência
sem os medos da boca
do estômago?
Como ousar a fé
sem as mãos dadas
para fazer milagres?
Escuras, as manhãs invadem
o acordar esperançoso
para um dia mais
ou menos
e já não podemos crer,
mesmo agarrados ao horizonte
em busca do sol,
que haja luz.

Thainá Carvalho é escritora e colagista sergipana. É criadora da revista Desvario, uma publicação digital sem fins lucrativos voltada à difusão da literatura contemporânea criada por mulheres. Lançou os livros de poesia As coisas andam meio desalmadas (2020) e O Amor em breve anatomia das horas (2021). Organizou, com Amanda Reis, a antologia de poetas sergipanas Passos da pedra ao mar.

A SEDE DA ORQUÍDEA

ROBERTO AMARAL

Ao mitigar a sede diária
dessa orquídea de brancas pétalas,
nutro-me com sua decomposição.

O cuidado
que ela me requer
dispõe-nos na luta
contra mútuos empalidecimentos.

Um dia,
ambos,
teremos sido
sementes dispersas
e desperdiçadas,
cultivadas em solo raso.

Por enquanto,
ao regar
o seu irrisório torrão,
faço-me humano de metal,
e, ela, se perpetra
em flor de plástico.


Roberto Amaral (Palmas/TO) é escritor, poeta, ensaísta e professor. Autor de Veredazinhas eleitas: rasuras lacanaianas em Grande sertão: veredas (no prelo); A teofania em Grande sertão: veredas; Do mundo, suas delicadezas; 54 [+ uma] mulheres do baralho; Contos extraviados; Uma Denise; Le mot juste; e Paul Ricoeur e as faces da ideologia. Organizador e autor do livro Leituras superviventes de “O burrinho pedrês”.

NIARA

NATAN CAMPOS

Depois de dez anos, a praga e a fome causada por homens sem fome deixaram a família de Montsho reduzida a ele próprio, dois filhos quase homens e a pequena Niara. Um dia Montsho e os dois filhos saíram para caçar a comida. Niara, que recebia certo silêncio por ter nascido para a morte da mãe, tinha a incumbência de preparar o fogo para quando chegassem. Mas daquela vez quis mostrar que era mais capaz que isso e os seguiu escondida, com o intuito de pegar a caça antes que eles o fizessem. O fogo ela acenderia com os olhos, como lhe havia ensinado a mãe em sonho e em segredo. Os homens não podiam saber daquelas mágicas de mulher.

No entanto, quando Daren, o filho mais velho, almejou a presa que se escondia atrás de uma touceira e foi buscá-la, sua alegria se transformou num grito de tristeza e dor.

Os três carregaram o corpo de Niara até as margens do Kouilou-Niari e lá o deixaram para que as águas a levassem em paz quando subissem.

Naquela noite, Montsho e seus filhos choravam e tinham fome porque não tiveram mais braços nem pernas para caçar depois do triste acontecimento. Mas quando já quase dormiam de tão fracos, ouviram batidas na porta. Faraji, o mais jovem, foi ver o que era. Niara, com naturalidade, pediu para que os irmãos a ajudassem com o animal que a custo arrastara até ali. Agradeceu os irmãos e nunca mais teve que acender o fogo com as mãos. Agora todos sabiam.

Natan Campos é o nome literário de Natanilson Pereira, autor maranhense de contos, cordéis, romances e sonetos. Participou de grupos literários como Curare e Carranca na década de noventa e atualmente dedica-se também à música. Autor do livro de sonetos A Ilha Naufragada.

TRAGÉDIA YANOMÂMI

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

99
100 c
210 cr
321 cri
432 cria
543 crian
554 crianç
565 criança
570 crianças
570 crianças m
570 crianças mo
570 crianças mor
570 crianças mort
570 crianças morta
570 crianças mortas
21 pedidos de socorro
21 pedidos de socorro ig
21 pedidos de socorro igno
21 pedidos de socorro ignora
21 pedidos de socorro ignorados
Genocídio tem nome e sobrenome

www.adrianolobao.com.br

INSPIRAÇÃO

SERGIA ALVES

– Vó, de onde nascem os poemas?
– Do silêncio.
.
.
– Nasceu?
– Com algum ruído.
– E agora?
– Limpar até nascer o silêncio.

 

Sergia Alves vive em Teresina-PI. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é acadêmica fundadora da Academia Piauiense de Cultura (APC). É autora dos livros: Quatro Contos (2018); Adejo (poemas, 2019, Coleção I Mulherio das Letras). Escreve para o blog Do Caminho, site da revista Revestrés.

MARINHA

RITA SANTANA

Todos os dias,
Afundo as mãos em Oceanos,
Mergulho em enseadas e rios,
Em busca do Silêncio.
Entre juncos, musgos e algas,
Encontro-me com a Solidão.
Embarcações rubras dançam
Valsinhas à beira do cais.

Engano-me com a pacatez das ostras
Deitadas sobre o esquecimento.
Murmúrios sustam a letargia das Horas.

As Deusas prevaricam informações,
Demoram-se sobre os corais que cobrem os barcos.
Busco, acintosamente, entre todos, a Ti!
Busco-te em meio aos operários de Tarsila.
Busco-te no arsenal de Rivera,
Enquanto distribuo armas aos rebeldes,
Enquanto, adrede, apaixono-me.


Rita Santana nasceu em Ilhéus, Bahia, a 22 de agosto de 1969. É graduada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz. É atriz com trabalhos em teatro, cinema e televisão; escritora e professora. Em 2004, ganha o Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela. Autora dos livros de poemas Tratado das veias (2006), Alforrias (2012) e Cortesanias (2019)

2 poemas de SANDRO FORTES

UMA VERTENTE

Busco um espaço, uma vertente, uma pausa
em que os contatos não sejam a destruição
da paz, o sequestro da luz, o abandono da alegria.
Onde encontrar uma clareira de quietude
em que os abraços sejam evidências claras?

Quando escrevo sou um horizonte recortado,
uma página pobre de margens delimitadas,
uma duna que se dissipa na respiração do vento.

Mas o corpo consegue encontrar vãos e saídas
dos dias impossíveis e das noites desoladas.
As mãos confrontam o vazio, a boca prediz a água,
os olhos fazem a travessia da sombra amarga.

As palavras vivas revelam uma vertente
verdejante, aberta, luminosa, ao corpo exilado.
São palavras nuas que ardem que respiram
que se prostram deslumbradas a teus pés.

ESTE AMOR

Este amor de portas abertas para o deserto
é um reino sem rei, um porto sem água,
uma dor, um ardor sob as chamas da chaga.
Pobre amor sem amar que espalha o seu vazio
a cada gesto baldio, em cada palavra vaga.
Ao redor a noite se amiúda em secreta tristeza.
Não existem pontes. E as mãos desapontadas
não afagam um rosto, um corpo, nada.
Os horizontes são nus e nulas as madrugadas.
A vida dói, a alma se estilhaça, tudo passa.
Ninguém respira na brisa azul deste silêncio.
Onde amar? Onde o fulgor fulmina. Num olhar,
sorriso, afago, abraço, o mundo todo se ilumina:
a alegria dorme nas pedras e nas pétalas do dia.

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Sandro Fortes é nasceu em 1970, em São Luís (MA). Formado em Letras e em Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão, publicou em 2006, o seu primeiro livro de poemas, Nós somos as palavras.