INSPIRAÇÃO

SERGIA ALVES

– Vó, de onde nascem os poemas?
– Do silêncio.
.
.
– Nasceu?
– Com algum ruído.
– E agora?
– Limpar até nascer o silêncio.

 

Sergia Alves vive em Teresina-PI. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é acadêmica fundadora da Academia Piauiense de Cultura (APC). É autora dos livros: Quatro Contos (2018); Adejo (poemas, 2019, Coleção I Mulherio das Letras). Escreve para o blog Do Caminho, site da revista Revestrés.

MARINHA

RITA SANTANA

Todos os dias,
Afundo as mãos em Oceanos,
Mergulho em enseadas e rios,
Em busca do Silêncio.
Entre juncos, musgos e algas,
Encontro-me com a Solidão.
Embarcações rubras dançam
Valsinhas à beira do cais.

Engano-me com a pacatez das ostras
Deitadas sobre o esquecimento.
Murmúrios sustam a letargia das Horas.

As Deusas prevaricam informações,
Demoram-se sobre os corais que cobrem os barcos.
Busco, acintosamente, entre todos, a Ti!
Busco-te em meio aos operários de Tarsila.
Busco-te no arsenal de Rivera,
Enquanto distribuo armas aos rebeldes,
Enquanto, adrede, apaixono-me.


Rita Santana nasceu em Ilhéus, Bahia, a 22 de agosto de 1969. É graduada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz. É atriz com trabalhos em teatro, cinema e televisão; escritora e professora. Em 2004, ganha o Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela. Autora dos livros de poemas Tratado das veias (2006), Alforrias (2012) e Cortesanias (2019)

2 poemas de SANDRO FORTES

UMA VERTENTE

Busco um espaço, uma vertente, uma pausa
em que os contatos não sejam a destruição
da paz, o sequestro da luz, o abandono da alegria.
Onde encontrar uma clareira de quietude
em que os abraços sejam evidências claras?

Quando escrevo sou um horizonte recortado,
uma página pobre de margens delimitadas,
uma duna que se dissipa na respiração do vento.

Mas o corpo consegue encontrar vãos e saídas
dos dias impossíveis e das noites desoladas.
As mãos confrontam o vazio, a boca prediz a água,
os olhos fazem a travessia da sombra amarga.

As palavras vivas revelam uma vertente
verdejante, aberta, luminosa, ao corpo exilado.
São palavras nuas que ardem que respiram
que se prostram deslumbradas a teus pés.

ESTE AMOR

Este amor de portas abertas para o deserto
é um reino sem rei, um porto sem água,
uma dor, um ardor sob as chamas da chaga.
Pobre amor sem amar que espalha o seu vazio
a cada gesto baldio, em cada palavra vaga.
Ao redor a noite se amiúda em secreta tristeza.
Não existem pontes. E as mãos desapontadas
não afagam um rosto, um corpo, nada.
Os horizontes são nus e nulas as madrugadas.
A vida dói, a alma se estilhaça, tudo passa.
Ninguém respira na brisa azul deste silêncio.
Onde amar? Onde o fulgor fulmina. Num olhar,
sorriso, afago, abraço, o mundo todo se ilumina:
a alegria dorme nas pedras e nas pétalas do dia.

.

Sandro Fortes é nasceu em 1970, em São Luís (MA). Formado em Letras e em Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão, publicou em 2006, o seu primeiro livro de poemas, Nós somos as palavras.

UM ESPÍRITO PESADO DEMAIS

THEO G. ALVES

Dona Izabel costumava rezar gêmeos de uma vez só, porque gêmeos são dois mas são um apenas, ela dizia. O espírito é tão grande e pesado que um corpo só não dá conta e por isso divide para dois, mas no fim é uma coisa só mesmo, foi como ela explicou à avó e aos meninos, que pareciam concordar com a benzedeira.

Zacarias e Zuquinha sempre pareceram o mesmo, tanto que era comum entre os meninos da rua perguntarem você é você ou é seu irmão? E todos riam diante da confusão em que um deles parecia se encontrar quando raramente estava sozinho. Em quase todos os lugares estavam juntos e talvez nem os pais soubessem dizer com certeza quem era um ou o outro.

Fisicamente nem eram assim tão parecidos, mas se comportavam de maneira tão idêntica que a aparência era o que menos contava. Não havia quem pudesse garantir que o cabelo mais claro de um continuasse a ser dele ou passasse a ser do outro no dia seguinte, ou a mancha rosada na testa que era mais intensa em um que no outro. Por certo, quando falavam, quando riam e as decisões que tomavam eram sempre idênticas.

Zacarias havia nascido primeiro e era pouco menos de vinte minutos mais velho que Zuquinha. Nunca fizeram conta disso, no entanto, e eram capazes de jurar que haviam nascido juntos, rigorosamente ao mesmo tempo, para o calvário de sua mãe. Não era, de fato, como se Zuquinha tivesse brotado a partir do irmão ou vice-versa. Tinham existido juntos, sido fecundados juntos, como um big bang dobrado de dimensões muito pequenas ao ponto de revelá-los para a vida ali no Barreiro das Almas, que era um universo do tamanho de um riacho pequeno.

Na escola, tinham sempre as mesmas notas e davam sempre as mesmas respostas nas provas. Até quando o diretor obrigou que fizessem as avaliações em salas separadas, responderam tudo exatamente igual, inclusive as respostas erradas. Nunca aceitavam jogar em times diferentes nas partidas de futebol e, quando tentavam separá-los, um sempre tomava a frente do outro para dizer que ou jogam os dois ou nenhum e já começavam a dar as costas para o campo de terra batida.

Nenhum dos outros meninos saberia dizer qual dos gêmeos havia sentenciado o destino dos times, mas corriam a dizer que tudo bem, tudo bem, podem jogar juntos.

Dona Izabel devia ter razão quando dizia que o espírito era pesado demais para um só e por isso tinham vindo dois iguais. É provável que dividindo o espírito para dois faltasse um pouquinho em cada um também. Eram a companhia um do outro. Havia muito pouco espaço para que alguém os ladeasse e não era comum vê-los partilhando atividades como as armadilhas que os outros meninos aprontavam para Dinho ou os ataques de pedras que armavam contra o muro da casa da velha Kolia, que vivia entre gatos, restos de comida e mofo de livros.

Não que houvesse nessa abstenção um princípio moral ou algo de compaixão por Dinho, que nem sabia levantar as mãos para se defender, ou por Kolia, a quem a solidão e o excesso dos livros fizeram doida. A ausência de Zacarias e Zuquinha nessas atividades era muito mais fruto do desinteresse pela companhia dos outros que algum engenho ético.

Quando passavam pela calçada em frente à casa de Dona Kolia, limitavam-se a pendurarem-se na janela para olhar entre as frestas. Viam o de sempre, a velha sentada na rede, os livros no chão e os pratos cheios de resto de comida sendo lambidos pelos gatos bem eriçados. Os dedos seguiam trançados e as pernas balançavam a rede aos pouquinhos, que era a mínima evidência capaz de distinguir se estava viva ou morta.

O cheiro de mofo, urina e comida podre vinha de repente por baixo da janela e acertava os gêmeos na cara, como se tivessem uma apenas, e eles faziam a mesma careta, se soltavam da janela, corriam gargalhando e empurrando um ao outro. A solidão de Dona Kolia continuava se balançando na rede, entre gatos e livros que talvez tenha lido. Era tão nítida e palpável a solidão da velha que podia ser vista pelas frestas da janela ainda que sob a pouca luz entrando magramente pela sala.

Vez por outra os gêmeos pulavam o muro de Dona Kolia para roubar as goiabas que ficavam maduras. Ainda que não refletissem sobre isso, não se sentiam exatamente ladrões porque sabiam que as mãos crispadas da velha não eram capazes de tirar as goiabas da árvore. Entravam em silêncio, pé ante pé, e com uma vara que escondiam no próprio quintal da sombra de mulher que se balançava na rede, punham-se a derrubar goiabas já amareladas de prontas.

Era algo improvável que uma goiabeira frutificasse tanto apesar do descuido de Kolia, que nunca havia regado nem protegido a árvore das lagartas. Dona Kolia só se balançava na rede com as mãos crispadas entre os gatos que arrodeavam os pratos com restos de comida e mais nada. Mas a goiabeira seguia pendida de frutos graúdos e muito doces.

Quando os sacos que os meninos levavam estavam gordos de tantas goiabas, fingiam ter ouvido o barulho da velha se levantando, escondiam a vara e saltavam para fora do quintal com o peso da pilhagem. Avisavam aos outros meninos que ainda tinha goiaba demais lá, vão lá, vão lá que o pé está carregado. E os meninos se agitavam para o roubo, mesmo que sob certo medo dos possíveis feitiços que a velha pudesse jogar sobre eles, que a avó já lhes tinha dito que Dona Kolia é uma velha muito poderosa e vocês abram do olho que se ela pega vocês faz virarem gatos iguais aos que estão lá ao redor dela. Os meninos não acreditavam nem desacreditavam totalmente nos poderes de Dona Kolia, a não ser por Adailton, que era descrente demais dessas histórias inventadas.

Zacarias e Zuquinha seguiam para casa com as sacolas transbordando de goiabas doces e se desviavam até o Açude do Governo para enfiar os pés na lama e encher a barriga antes de terminarem o caminho.

Quando chegavam, as duas sacolas eram uma agora, como eles. Entregavam-na à mãe antes que o pai lhes tomasse as goiabas e os pusesse de castigo, mesmo sem devolver as frutas a Dona Kolia ou a eles, cujo roubo dava-lhes o direito de posse segundo as regras morais que criaram sem jamais terem pensado nisso.

Os gêmeos tinham sempre a impressão de que cabia ao pai tomar-lhes tudo. Tomava-lhes as goiabas que haviam roubado com seu próprio esforço, tomava-lhes o troco miúdo que a avó lhes dava ao fim dos almoços de sábado, tomava-lhes até o que os meninos achavam na rua ou no lixo da oficina e que levavam para casa apenas pelo brilho, como rolamentos, cacos de baquelite e de espelhos, vasos bonitos quebrados no beiço e qualquer outra coisa que pudesse parecer deles.

A mãe também era algo que Zacarias e Zuquinha acreditavam ter-lhes sido tomado pelo pai. Antes de ser mãe dos meninos, ela era a mulher do pai, e os gêmeos eram sempre preteridos em qualquer ordem. O pai tomava café primeiro, e a primeira colher de cuscuz ia sempre para o prato dele, assim como o primeiro e o último copo de suco feito com as goiabas que tinham sido roubadas com o próprio suor e engenho dos irmãos. Deixem esse suco aí, meninos, que é de seu pai.

Tomava-lhes tudo e lhes oferecia muito pouco em troca. Um teto, os banhos, a comida que não cabia em seu prato e umas poucas roupas, que ninguém aqui tem para viver luxando, não, como ele usava, dizia. Tinha dado nomes aos dois também, ainda que tivesse roubado o de Zuquinha, a quem chamava unicamente pelo apelido, e essa era uma das poucas coisas que não lhes permitia serem iguais em mais. Um tinha nome de pia, o outro tinha resto de nome.

A usura em que o pai os matinha era constante, mas Dona Izabel não podia curar a doença do pai benzendo os filhos. Ela os sentava em um par de bancos juntos e os rezava ao mesmo tempo porque os dois são um só, mulher, espie. A avó queria rir, mas se continha, também porque acreditava na mesma coisa. Dona Izabel punha-se a benzer e o ramo desenhava cruzes da testa ao diafragma dos gêmeos, bocejava pequenas flores roxas de metal entre palavras que os meninos tentavam adivinhar pela curiosidade. Os galhos de arruda secavam rapidamente, ficavam acinzentados, murchos e ela os substituía por outros. Bocejava ainda mais, falava ainda mais rápido, mais entredentes, e o cheiro metálico que saía de sua boca ficava mais denso todas as vezes em que parava para tomar fôlego.

Terminava de rezá-los exausta e dizia para a avó leve esses meninos, mulher, pelo amor de Deus, leve essa alma daqui.

A avó saltava da cadeira e tangia os meninos para fora da sala escura dizendo vamos, vamos, vamos vocês dois que a velha está morre não morre. Zacarias e Zuquinha apertavam o passo para fora sem se olharem e, quando o primeiro pé encontrava a calçada, punham-se a correr para casa sentindo alguma culpa, como se tivessem atentado contra a vida de Dona Izabel.

Eles não se lembrariam disso muito mais tarde quando estivessem homens feitos, trabalhando na fábrica de algodão, o serviço pesado dobrando a coluna dos dois que arquejavam no mesmo ritmo depois de cansados, indo embora com algum dinheiro no bolso. A lata em que amealhavam os trocados que o trabalho rendia era a mesma para ambos, bem escondida em um buraco que fizeram no chão, embaixo da cama de Zuqinha, escondida sob as peças metálicas que ainda encontravam no lixo da oficina, os restos de baquelite e cacos de espelho, para que o pai não viesse a encontrá-la. Sabiam que a regra seguia a mesma dos tempos de meninos, e como o pai sempre repetisse, enquanto vocês estiverem nesta casa o que estiver aqui é meu, não tem conversinha.

Ainda que ajudassem a manter a casa, o suco, o prato, a mãe e qualquer outra coisa seguiam pertencendo ao pai. Até a lata com o dinheiro que guardaram por dois anos e que serviria para irem embora do Barreiro das Almas e se livrarem da mão pesada do pai que lhes tomava tudo também foi usurpada. Quando a encontrou, o pai ficou furioso por todo aquele dinheiro guardado de tempos, escondido sob o chão da casa que é minha, do quarto que é meu, da cama que é minha e vocês que são meus também, gritava.

Os vizinhos ouviam o vozerio e aguçavam os ouvidos tentando descobrir sobre a palavra dinheiro que soava sempre mais alta e clara que as outras.

Dona Izabel não havia morrido depois de benzer os meninos, que juravam tê-la quase matado. No entanto, aquele momento poderia ser considerado uma primeira experiência a ser melhorada, mais efetiva e calculada, esperando o pai adormecer para que um dos gêmeos arrastasse o caco de espelho de um lado a outro da garganta do velho enquanto viam-no afogar-se de dentro para fora no próprio sangue. A mãe horrorizada à porta do quarto sem a mínima certeza de qual dos filhos havia matado o pai, por isso dizia com pouca voz o que vocês fizeram, meninos, o que vocês fizeram com seu pai?

A mãe irrompeu a garganta da noite com um grito e os gêmeos entenderam que era hora de porem-se a correr. Os dois tinham sangue nas mãos e não é possível dizer qual deles soltou o caco de espelho em meio à fuga. Pegaram a lata de dinheiro que era de novo deles, agora sem pai que a reclamasse, e correram em direção à mina para se esconderem no mato. Não tinham plano algum, senão pequenos objetivos, como sobreviver, fugir e fazer a vida em outro lugar que isto aqui não é terra para ninguém, aqui é só sofrimento, eles diziam um ao outro jurando a si mesmos que tinham feito o que era necessário.

Quatro dias depois a polícia os encontrou muito abatidos, com fome e sede, os corpos marcados pelos espinhos de cardeiros, fedendo e agarrados um ao outro como se fossem um só, o espírito que compartilhavam por ser pesado demais para que apenas um carregasse.

Só uma vez a mãe foi vê-los na delegacia porque precisava dizer a eles que o inferno estava esperando por vocês, que não há dinheiro nem nada no mundo que justifique matar um pai, um homem bom que nem o pai de vocês era, que só era duro para ensinar a vocês que a vida não é brinquedo e vocês frios desse jeito, vocês são filhos do diabo e a culpa é minha que botei vocês pestes no mundo, que eu sabia que esse negócio de gêmeos era sinal de desgraça, que é coisa de quem tem pouco espírito para dois, que carrega a alma pesada demais para um, desgraçados.

Zacarias e Zuquinha foram encaminhados para cadeias diferentes, separados pela primeira vez, e desde esse momento começaram a morrer de fato.

Não tinham contato nem notícias um do outro. Ninguém os visitava na cadeia e a grande falta que sentiam era de poder saber como estava o irmão, que das outras pessoas não chegavam a dar fé nem sentiam saudades da mãe.

Zacarias nunca foi avisado da morte do irmão em pleno mês de junho que é tempo da padroeira. Ninguém lhe contou que Zuquinha tinha sido morto por algum companheiro de cela enquanto dormia, esfaqueado no pescoço, parecido com o pai. Não conseguiu gritar por ajuda e os outros presos não se envolveram e deram as costas para não o ver morrer como um bode sangrando sem conseguir balir. Demorou muito para conseguirem limpar a cela depois, mas nem queimaram o colchão de Zuquinha. Botaram para quarar ao sol enquanto outro preso não chegava para precisar dele. O cheiro ferruginoso de sangue demorou a sair e o chão continuou manchado, ainda que não fosse a primeira nem a última vez que o tingissem daquela cor.

Verdade que Zacarias não foi avisado da morte do irmão, mas começou a morrer aos poucos por conta própria. No mesmo mês de junho começou a definhar e a se encostar nos cantos de parede, sem querer comer nem sair da cela. Passava os dias variando entre estar deitado e sentado agarrando os joelhos, com a cara escondida, segurando o choro pelos cantos porque é muito perigoso para um homem chorar na cadeia. Ficava um pouco menor a cada dia, as costas doíam muito e mal conseguia ficar de pé. Sabia que era o espírito pesado demais para um só, sabia que alguma coisa de ruim havia acontecido ao irmão, com quem já não podia mais partilhar o peso de tanto espírito.

Ainda não havia começado setembro quando um dos que dividiam a cela com Zacarias gritou para um guarda venha ver que um aqui passou. Os homens fardados verificaram o corpo de Zacarias e deram certeza de sua morte, amofinado no canto da cela. Quando o tiraram de lá, estava tão pequeno que parecia um menino preso ali por engano. Apesar do tamanho, pesava muito e foi preciso chamar um terceiro guarda para que conseguissem tirar o gêmeo Zacarias de lá.

.

.

Um espírito pesado demais se constitui como trecho do romance Barreiro das Almas.

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas mora em Santa Cruz, no interior do Rio Grande do Norte. Foi premiado em concursos nacionais e locais tanto por sua prosa quanto poesia. Publicou, entre outros, os livros A Máquina de Avessar os Dias, Doce Azedo Amaro, Caderno de Anotações Breves e Memórias Tardias, Por que Não Enterramos o Cão? e Barreiro das Almas. Theo continua escrevendo, entre silêncio e barulho, por acreditar na palavra como um caminho possível e necessário.

À LUZ DE VELA

LÍLIAN ALMEIDA

Faltou luz. A energia caiu depois da ventania. Tinha muito trabalho pela frente. A cabeça ainda elétrica. Sem luz, restava pouco a fazer. Aguardar. Dias antes, no mercadinho, olhei para as velas, ao lado das caixas de fósforo que peguei, e pensei que não precisaria delas. Sabedoria não falha no tempo das coisas. O momento das velas chegou e não as tinha. Certo assim!

A janela aberta para alguma claridade da noite de lua, coberta de nuvens, deixava o quarto um pouco menos escuro. A bateria do celular em 15% seria preservada para uma real necessidade. Os pratos na pia, as roupas para guardar em cima da cama, o feijão a catar, tudo teria que aguardar a luz. Fazer o quê? Deitei. Cogitei sobre o tempo necessário para restabelecer o serviço de energia elétrica. Quando voltasse teria isso e aquilo para fazer. Agora, nada não. Lembrei que poderia respirar. Seria uma maneira de relaxar, descansar para quando pudesse voltar ao trabalho.

A vizinha certamente divisou pela janela o breu do lado de cá e gritou se precisava de vela. Aceitei. Agora alguma luz dava espaço para guardar as roupas, tomar banho. Os pratos e o feijão ficariam para quando tivesse mais luz para discernir o bom do ruim, o feito do mal feito.

Luz de vela pede história. Era assim desde a infância no subúrbio precário em que cresci, nas muitas vezes em que faltava energia elétrica. Recordei que ficávamos em casa sob a luz tremeluzente da chama das velas, contando histórias de lobisomem, assombração, ou desenhando, com as mãos, sombras na parede. Às vezes a chama provocava um vulto e era o suficiente para alguém gritar e assustar todo mundo.

Agora era só eu no quarto, não tinha os primos, a avó ou os pais para contar causos. Olhei para o livro, na mesa de cabeceira, que avançava um capítulo por dia antes de dormir. Na adolescência, a mãe reclamava quando, nessas noites de escuro, eu levava a vela para cima da mesa, trazia um livro pra perto e lia as páginas amareladas pela chama da vela por horas a fio. Estraga as vistas, dizia. E ainda tinha o risco de botar fogo no livro, na mesa e, na dramaticidade da mãe, na casa inteira. Mesmo com o temor agravado pelas sentenças maternas, eu não deixava de ler à luz de velas.

Tomei o livro como fazia antes, posicionei a vela um pouco mais alto, acima de mim, para clarear bem. Com a experiência da adolescência aprendi que colocar a vela mais alta gera maior expansão da luminosidade. É preciso também sentar próximo, pois à medida que a luz se espraia perde força, brilho. Carecia de óculos para percorrer as letras. Demorou um pouco para as retinas se adaptarem, mas consegui dar ritmo e fluxo à leitura.

Desvendava a fuga de uma das personagens e a orfandade de outra, a irmã, que se agarraria à terra como a uma mãe. A terra enchia de significado a vida naqueles sertões. Coisa que a escola local ignorava, cheia de palavras estranhas, homens e histórias longínquas, alheias. Era o coração da terra que a irmã escutava quando deitava para cheirar a umidade do chão depois da chuva. Não podia sentir o mesmo com os cadernos. As horas iam no ritmo da leitura e das pausas que eu fazia para preencher as cenas com meu próprio repertório de vivências. Esqueci da vela. Lia como se estivesse junto com as irmãs separadas, solidárias à solidão de cada uma delas. Toda a ambiência era propícia à confluência entre as nossas vidas.

Agora chovia. Prestei atenção ao barulho da chuva no telhado e agucei o olfato para o cheiro da terra. Um clarão piscou, depois se manteve acendido. Lá fora, gritos alegres. Os eletrodomésticos emitiam ruídos como se voltassem à vida, a funcionar. O quarto agora estava iluminado pela lâmpada. A vela sobrava. Alguma magia desfez-se. Eu olhava a placidez da chama, adivinhava o cheiro do fim. Soprei. Um fio de fumaça dançou no contraste com a janela aberta. Sentada, inalei o cheiro de parafina como se mantivesse iluminada, dentro de mim, a infância.

.

Lílian Almeida é professora adjunta na Universidade do Estado da Bahia. Tem publicações em portais literários, revistas digitais e antologias. Participa de eventos literários no Brasil e em outros países. Foi uma das curadoras do I Encontro de Autoras Baianas. Publicou Todas as cartas de amor (prosa, 2014) e Pulsares (poesia, 2019, Prêmio Caramurê de Literatura).

A HIPÓTESE KRÓNOS

RAIMUNDO SOARES

01

a estrada é longa, o abismo,
aves devoram o tempo,
deus está ali nos arbustos
sem sarça ardente

não espante os fantasmas,
grite e morda a paisagem,
as horas mais densas
não cabem nos olhos

e resta o mistério
deus morto na ribeira
rio, te espera o cadafalso
iluminado por estrelas.

§

02

escrever é alquimia
auscultar o corpo faminto
na noite cega
nas mãos que não sinto

e tombar exausto e perdido
no caminho sem volta
o poema como agouro sombrio
na alma que se mostra

oh, mestre do terreiro
devora essa encantaria
é o mar no sangue
no silêncio do dia.

§

03

ninguém verá a sombra tardia
sob mil janelas cegas
a flor que cresce sozinha
não espera

que a tarde chegue
e devore a sagrada eucaristia
tombe, oh noite,
essa lua de tantos mitos

é uma chaga aberta
memento mori
o tempo é uma ave cega
que me devora o corpo.


Raimundo Soares é poeta, natural de Itapecuru Mirim, interior do Maranhão, servidor público. Participou da coletânea Babaçu Lâmina (organizada pelo poeta Carvalho Júnior). Parte de sua produção poética está no blog Turista exilado, e também na Revista Germina.

DOS MISTÉRIOS IMPERATIVOS

RITA SANTANA

A fim de entendimentos,
Inundas meu corpo de orgias e rituais.
Observa a impudência das begônias
E a cordura das rosas:
A precisão imperará sobre tuas mãos,
E se fará sabedoria no tempo da brusquidão
E no levante das gentilezas.

Vigia a erupção das avencas,
E a quietude que também é adubo
Para o seu esplendor.
Nada em mim perdura na sofreguidão:
Careço de palavras e de mutismos.

Não sufocar as raízes, nem a imersão das vontades.
A vida perde-se, soterram-se os desejos.
O trato é o mesmo: observâncias
Do que em mim é interno, é terra.
Húmus onde desatino gozo,
Onde tudo é Sacralidade e impureza.
Desde que aprendi a plantar cores no quintal,
Vivo assim, desintegrada da razão.


Rita Santana nasceu em Ilhéus, Bahia, a 22 de agosto de 1969. É graduada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz. É atriz com trabalhos em teatro, cinema e televisão; escritora e professora. Em 2004, ganha o Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela. Autora dos livros de poemas Tratado das veias (2006), Alforrias (2012) e Cortesanias (2019).

FEITO A IMAGEM E SEMELHANÇA

AIRTON SOUZA

feito a imagem e semelhança
dos que têm fome e presságios
ícaro cartografa na palma das mãos
os pronomes que semeiam as palavras:
terra e amor

sozinho faz atravessar, entre os próprios dentes,
o sentido uníssono das paisagens
que agora acreditam mais na infância
do que na silhueta perpendicular de deus

ícaro esquece as orações antes da guerra
porque sabe que os homens, ainda atávicos,
preferem pincelar ausências e tragédias
ou bordar no peito o peso dos ossos
quando estão distantes da tarefa de anunciar horizontes

tingido pela nudez das vozes
de mulheres, crianças e anciãs assassinadas
o corpo de ícaro sonha todos os dias
como conseguir terminar o único vocabulário
capaz de acordar as auroras
& fazer do escuro uma legenda sem desertos.

as confissões de ícaro não fabricam hemisférios
elas derramam o artifício de janelas
dentro dos olhos dos que morrem
antes de compreender a angústia dos arbustos
dos que perdem a noção das bugavílias
dos que amanhã, dentro da consumação do azul,
esquecem para sempre a retórica dos biombos
ou dos que sabem mais de abandonos e desgraças
do que de deus, ternura e estrelas

por não conseguir equilibrar uma pátria na língua
ícaro faz demorar em sua garganta
a tristeza dicionarizada pelos vaga-lumes
e isso o deixa sem saber abrir
a urgência mineral da dormência dos pássaros
o deixa caminhar longe dos pentecostes
e com a boca fedendo a hospício
as asas de ícaro repetem sem parar:
“deus não sabe imitar a efemeridade das árvores”

por vezes, ícaro tem vontade de ter um útero
só para chegar mais perto da primavera
& sem vírgula no próprio crânio,
ainda temerário, ter forças para gritar:
“nem deus, nem as mariposas estão consumadas!”

amputado pela anatomia do país
ícaro se engasga de quintais e pântanos
mas, interminável, germina outro amanhecer
onde deveria morrer os carrascos
onde deveria nascer a dimensão dos milagres
a ferrugem das sementes incendiadas de saudade
ou os estilhaços dos portos sem memória

para ícaro o último rosto da varanda
não esconde os sussurros inconsoláveis das águas
a inclinação dissipada das preces
o rubro das planícies negadas por deus
a relva abraçada de túmulos e a imaculação
o cheiro improvável e entreaberto dos suicidas
a aflição das mãos derrotadas pelas igrejas

amputado pelos ruídos das neblinas
ícaro batiza outras liturgias
na carne florescidas no rosto dos peregrinos
faz ressoar minúsculas sodomas quase vazias
nas retinas de homens que apertam gatilhos
pensando que é possível tingir o próprio filho
com ilhas e bangalôs

só ícaro sabe ampliar o sal dos séculos
na língua latifundiária dos assassinos.

ícaro sonha com casas, falésias e as últimas chuvas
porque não aprendeu a gênese da carne
há dias em que ele atravessa com dedos côncavos
a vociferação capaz de envelhecer os rios
tentando acordar as primeiras camadas das reticências
em outros perdoa os atlânticos ancorados
dentro dos corações dos mendigos
ou mesmo assim devota o sétimo dia na fome dos peixes

para enterrar uma procissão de hectares
que jamais dariam conta de multiplicar o idioma
em que a horizontalidade cândida de deus
ressuscita arquipélagos caligrafados amanhã
pela agonia das libélulas
ícaro sonha com mapas, amapolas e as primeiras obliquidades

ainda nu de retrato e contínuos holocaustos
& como se fosse preciso atravessar
todos os relevos caiados de indelicadezas
ícaro encharca as pálpebras com paredes
traz das catástrofes pronunciadas primaveras sem cheiros
para alimentar outra vegetação nas bocas das mães
que morrem sem aprender a devorar:
o lado mais obscuro de deus
a parte menos azul do assombro
os nomes soerguidos por deuteronômio
as antigas lembranças molhadas pelos cabelos

tanto a mãe que morre quanto ícaro
sonham com o abstrato amor esquecido
pela amplidão muda deixada pelo sudário de cristo.


Airton Souza [Marabá/PA, 1982] é poeta, professor e pesquisador. É doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, pela Universidade Federal do Pará e Mestre em Letras, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Já publicou 43 livros e já participou e mais de 100 antologias.

ADIÓS, MAFALDA

WANDERSON LIMA

Qualquer mitologia é um processo em construção. Os mitos mudam de significado e, até mesmo, podem ser substituídos. Cada época inventa ou recria seus mitos segundo suas necessidades.

E, como bem sabiam Barthes, Campbell, Eco e Eliade, os mitos não são heurísticas próprias apenas dos grandes sistemas religiosos. A mitologia pop das democracias liberais é pródiga de figuras e narrativas que sintetizam dilemas éticos, morais e políticos.

Como mitologias “profanas”, elas não sancionam nem fundam regimes de verdade, porém indicam os caminhos e os dilemas da consciência coletiva. São sintomas e, em alguns contextos, formas de intervenção, de que Mafalda, a menininha comunista, amada por metade da América Latina e odiada pela outra, é exemplo. Os Estados Unidos criaram mitos pops triunfalistas, como Mickey Mouse e a imensa galeria de super-heróis. São como a face inconsciente do arrogante papel de legislador do mundo que os EUA atribuem a si. Os dois mitos pops mais bem-sucedidos da América Latina são Mafalda e Chapulín Colorado, dois anti-heróis nada épicos, que lutam por justiça sem se sentirem, como Superman e sua trupe americana, portadores da justiça e juízes do mundo. Preciso explicar por que os dois são a síntese dos nossos dilemas e do nosso conflito de autoimagem?

Não é à toa que Mafalda oscila entre a utopia revolucionária e o pessimismo niilista. São os polos em que oscilamos em nossa jornada de sujeitos latino-americanos sem dinheiro no banco. Somos nós, ou ao menos uma parte muito significativa dos latino-americanos. Quino foi um poderoso mitólogo, e sua genialidade sintetizou nossos dramas na forma de humor e de indignação, de poesia e de revolta. Ave, Quino!

NA SANHA DO INTAMANHÁVEL

NUNO RAU

Resenha de XILOGRAVURA DE PÁSSAROS

há palavra inventada
para o que teu sorriso esculpe?
Carvalho Junior

Alguns poetas realizam, num curto tempo de vida, o que não raro se necessita de décadas de trabalho incessante sobre a palavra: desenvolver uma voz. Dizem que a chama, quanto mais intensa menos dura – a metáfora não é nova, mas lançar mão dela, no caso de Carvalho Junior, é mais do que apropriado. Em seus trinta e cinco anos de vida, e, pelo que pude observar, particularmente em seus últimos cinco anos, o poeta vinha consolidando essa voz que se constituiu em assinatura pessoal no contexto da poesia escrita no Brasil dos anos 2000 em diante.

Tendo como certo que pouco se lê, e quando se trata de poesia menos ainda, é importante buscar um desenho do que confere à poesia de Carvalho Junior essa singularidade, particularmente no caso de Xilogravura de pássaros (Editora Penalux, 2021), seu livro póstumo, mas todo pensado e organizado pelo poeta. Entre tanta e tão vasta e diversa produção contemporânea, o que distingue esse poeta que, por sinal, não se afirmava poeta, mas versicultor?

Este já é um ponto notável de distinção: ao não se conferir a denominação poeta, e preferir versicultor, Carvalho aponta para o trabalho do poema em vez de dar valor aos louros da atividade, ao título. Versicultor, que em breve pesquisa não consta em nenhum dicionário on line de língua portuguesa, é aquele que se ocupa da produção de versos, do poema, de sua carpintaria, sua arquitetura, na lavra cotidiana das palavras. Aqui temos mais um aspecto que revela o grau de consciência de Carvalho sobre seu ofício. No livro Ideia da prosa, Giorgio Agamben nos lembra que versura é o termo latino que designa o lugar em que o arado dá a volta no fim do campo, e, por homologia, designa igualmente aquele ponto em que o verso termina, mas não necessariamente a unidade sintática da frase que ele conduz, a ideia, que pode prosseguir no verso seguinte, e assim sucessivamente. A poesia parece iluminar, em quem dela faz um eixo da vida, essa conjugação de sentidos e possibilidades, e com Carvalho não se fez diferente.

Vejamos alguns de seus livros anteriores, como exemplos da ideia que perseguimos nesse texto. Em No alto da ladeira de pedra (Editora Patuá, 2017), o poeta (sim, poeta!) declara ser um índio fantasma da tribo Quirola, para então desfilar o conjunto de signos da cosmologia extraída de sua Guanaré, mais tarde chamada Arraial das Aldeias Altas e, a partir de 1836, município de Caxias. Essas aldeias altas eram habitadas pelos aroás, guengês e pelos timbiras – conjunto de povos indígenas do tronco Macro-Jê: apanyekrá, apinayé, canela, krahó, krinkatí, pukobyê, os pouco numerosos krenyê e kukoikateyê, e os kenkateyê, krepumkateyê, krorekamekhrá, põrekamekrá, txokamekrá, que se dissolveram entre alguns dos povos timbiras inicialmente enumerados. Só por essa breve enumeração se pode entrever o caldeirão de cultura em que bebeu Carvalho, assim como a paisagem rural, com seus rios, fontes, sertões, céus azuis, se trança com o registro urbano das ladeiras de pedra, pistas de asfalto, casarios, jardins, e em meio a tais cenários se desenrola a aventura que vem dos ancestrais e atravessa a carne do poeta. Essa ancestralidade adensada no corpo do poeta é o que faz nascer O homem-tijubina (Editora Patuá, 2019), que sabe que “o outro lado da vida está no verso”. De novo a poesia ilumina quem a abraça produzindo significados inesperados: tijubina é um lagarto que habita o espaço das cidades daquela região, símbolo de resistência e símbolo de renovação, porque quando tem sua cauda arrancada, ela renasce, recompondo seu corpo mutilado. Melhor metáfora para poeta talvez não exista, e não só, para qualquer ser vivente que enfrente os embates da vida, com suas pequenas mortes, acidentes, veredas e descaminhos. Se relacionarmos ao poeta a ideia da tijubina, o poema é a cauda, que, arrancada, ainda pulsa isolada do corpo.

Ficamos nesses dois exemplos de livros anteriores, porque neste texto não se pretende uma análise crítica da poesia de Carvalho Junior; o objetivo é apenas dar uma notícia do tanto de realidade que estava impressa em seus versos. E alguma clarividência, já que o poeta acertou ao vaticinar que era “dessas sementes desacreditadas/ que o vento rouba das cercas da morte/ e lança na outra margem do rio/ pelo milagre do bico do pássaro”. Eis que o vento, pelos nossos olhos leitores, carrega os versos do versejador – para não fugirmos ao seu termo preferido – que crescia a cada livro, produzindo uma poesia extremamente original, profunda, atravessada pelas vozes de sua terra natal, as vozes ancestrais, e também pelas manifestações da natureza em sua diversidade: rios, flora, fauna, pedras, tudo em seus versos adquiria uma personificação, um estado de alma que nos comunicava algo de essencial, e por modos que reproduziam a sua escuta apurada da fala local. A geografia e a linguagem eram suas ferramentas, e ele as manejava cada vez com mais precisão, abandonando progressivamente qualquer traço de influência com que todo poeta constrói sua voz pessoal e intransferível. Carvalho ao partir tinha 35 anos: fico imaginando o que iria fazer aos 50, 60 anos, com o aprofundamento de meios e de olhares, com o permanente caminho que tinha estabelecido de questionamento do fazer poético.

Importa também dar notícia do modo sempre amistoso de aproximação Carvalho, a forma como construía as pontes com as pessoas, sua simplicidade elegante, uma simplicidade que escondia, como se entrevê nos parágrafos acima, um poeta cuja profundidade vinha sendo elaborada diuturnamente, por um lado extremamente atento aos movimentos do presente, por outro imune a todo modismo que o desviasse do caminho traçado por seus versos, que ele sabia – ou intuía – um percurso independente de qualquer campo majoritário da poesia contemporânea, sem que, com isso, quisesse contestar ou desconstruir o que quer que fosse. Seu nome era comunhão.

Essa comunhão era demonstrada de muitos modos e em não poucas searas. A nota de pesar emitida pelo Centro de Ensino Gonçalves Dias, do qual fora o diretor-geral, declarou: “Ele nos fez gostar ainda mais de poesia. Estava no seu sangue a poesia, estava em seu viver”. Nada mais acertado poderia ser dito, nós que de algum modo tivemos sua convivência sabemos bem o quanto a poesia era para ele não um exercício de orgulho, mas uma prática que se assemelhava à fé para os que creem, algo que permeava seus dias, sua vida e seus gestos (importa dizer que quem escreve estas linhas é um agnóstico feroz, o que, penso, torna a comparação mais forte ainda). A sua generosidade e receptividade se estendiam no ato de espalhar a poesia de seus pares, dialogar com ela, criando intercâmbios entre pessoas e instituições.

Xilogravura de pássaros aprofunda o caminho consciente que Carvalho Junior vinha pacientemente construindo. Comecemos pela dedicatória: “para os pássaros-índios de minha vida, Raimundo, Elias e Francisco. E para todas as outras ramificações que dão substância ao meu canto”. Ancestralidade, afeto e traços de sua cosmologia se imbricam em poucas e profundas palavras; mesmo quem não leu seus livros anteriores pode intuir para onde a bússola do poeta aponta. A despeito dessa coesão, Xilogravura de pássaros como que representa o corpo do poeta e o corpo do poema, como posto, e nada fortuitamente, no poema “Esfinge”, que abre o livro: “o poeta, xilogravura de pássaros,/ se revigora na esfinge do silêncio:/ de uma sílaba de revestrés, lançada/ na escada de areia deste chão de urtiga”. Os pássaros e seu canto são realmente uma presença que atravessa o livro: trinados, gorjeios, gaiolas, plumagens e outras metonímias marcam a relação entre poeta e ave.

O livro é dividido em três partes: Os sibilos da casca, Outros engasgos na enfieira e Azul sereno no anzol. Já esses nomes impactam por sua matriz oracular, de sentidos que se rebelam e apontam para mais de uma direção. O que seriam os sibilos da casca? Aqui entrevemos que o livro vai nos situar diante do drama que se desenrola na relação entre indivíduo, linguagem e mundo: sibilos, popularmente conhecidos como chiados, se caracterizam por um som agudo, parecido com um assobio, que é ouvido quando a pessoa respira, e consistem numa patologia: ocorrem durante a respiração quando há bloqueio parcial das vias aéreas, por alergia, asma ou problemas no sistema respiratório. O poema seria, então, o sintoma de uma patologia. E a casca? Diz o poeta que “a casca deste chão/ é o umbigo da minha voz”, dando a entrever a relação telúrica que sua poética desenvolve e indicando a parcela-mundo do sistema pessoa-linguagem-mundo que seu olhar elabora.

No primeiro poema (o já citado “Esfinge”), poeta e esfinge se confundem, a tijubina – que não entrega seu nome – ressuscita e, poeta, se revigora no silêncio. A atmosfera é de suspensão, algo que precede o Acontecimento (o poema?) atravessa todos os versos. Há espera, olhares expectantes, e o livro se abre, inaugura-se. Em “Lâmina e liame” o poeta inscreve no corpo as raízes de sua poesia, da pulsão à febre, da voz ao sopro, alma, que ecoa sons da infância. É neste livro, por sinal, que a cosmologia ameríndia & urbana de Carvalho aparece com os contornos mais nítidos, precisos, denotando projeto e desígnio. O livro é todo ele um pátio – lugar de repouso e reflexão – onde a imaginação conflui com o pensamento no desenho/xilogravura do real. Não é, decerto, o real mesquinho, cotidiano, reduzido a golpes do neoliberalismo até esconder-se no insignificante. O mínimo, quando aqui comparece, é para lembrar que contém o projeto do universo, que há comunhão entre grão e galáxia, como em “Além do intamanhável” e que em “Fortuna” espelha a trajetória que vem dos antepassados:

do meu pai
uma faca de desossa.

de minha mãe
uma agulha de mão.

o que mais herdei do mundo?

quatro quibanos de utopias quebradas,
a teimosia de trinta gerações inteiras,

uma cuia de infecundas sementes,
quatorze pedras no alto da ladeira,

um açude de peixes sem respiração,
oito balaios de apitos de madeira,

um rio de pássaros trêmulos na boca,
a bilha ardente das águas da Gameleira.

As obsessões do poeta estão aí lançadas, como pedras ao rio. Entre aquelas que remetem ao passado, há (e não apenas nesse livro) outras que remetem a certa asfixia, o poeta fala do fundo de um poço: “a vida inteira estive dormindo dentro de um poço escuro e sujo,/ afogando-me o nome, o pássaro e a semente, a infância e o amor”. As condições objetivas do mundo, as limitações, os sistemas, o modo como os aspectos do capital se infiltram em nossa carne (como agulhas), tudo isso cria uma interferência ao (im)possível idílio que a ancestralidade desenharia. Nela mesma está inscrita a tragédia: povos dizimados, de um lado, populações inteiras sob o jugo do poder, como os balaios. A tragédia da asfixia – social, histórica, existencial – explica os sibilos.

É dessa massa de anônimos e de vidas que foram apagadas que o poeta extrai personagens imaginárias que deslindam definições de poesia em “Simpósio”: Danton de Quirola, Alice Maranhum, Pai Nêgo dos Silvestres, Elias Soudade, Acrísio Marmo, Isabel Aldeia, Zeca Condave e Júlia Pardoca são alter egos do poeta, e nos traduzem o que seja a poesia, ou seja, o intraduzível (o que se perde na tradução, como disse Robert Frost – e perde-se sempre demais, acrescentaria), sendo, também, o retorno do recalcado no contexto maior da História. E não é só ao concerto de vozes silenciadas que Carvalho alude: o poeta está atento não apenas às palavras, mas às partículas que as compõem, as letras, como atesta “Vogais”, no qual o versejador ensaia um pós-Rimbaud-de-alma-timbira (não resisto a transcrever todo o poema):

[a]
alma-de-gato em flutuação no açude das bocas e na ferrugem do amor fora do ninho.

[e]
estrelinha-do-norte com espeto de delicadeza nos ecos dos uí-puís escondidos nas sobrancelhas brancas da árvore de fonemas virgens.

[i]
inhambu-relógio atrasada para o início da noite em que o desenho do sorriso da índia ainda se guardava numa flor de jenipapo.

[o]
olho falso de uma sabiá-de-óculos choradeira de ontens no trincado amarelo de anéis dentro do ouvido sem espanto.

[u]
Uru-de-topetes derramador de flautas de bambu na libélula das orelhas despertas às funduras nascentes da noite urutauzada de utopia.

A vinculação entre som, imagem e sentido é profunda, e nos captura para dentro do poema em sua vertigem. Chegando quase ao final da primeira parte do livro, Carvalho nos entrega uma de suas influências: Nauro Machado. A profusão de imagens e a sonoridade da poesia de ambos guardam forte relação, e no melhor sentido, posto que não de superfície ou de emulação formal – é constitutiva, e sabe a alquimia, porque comparecem também Jorge de Lima, Augusto dos Anjos, Murilo Mendes e outros, como metais no cadinho de Carvalho Junior.

Avançamos, então, para a segunda parte do livro, Outros engasgos na enfieira, onde o poeta-pássaro se transmuta em poeta-peixe (porque o Maranhão possui uma invejável rede hidrográfica), mas já pescado e pendurado num galho em forma de forquilha, a enfieira. Os poemas – que antes foram sibilos – são o engasgo, o espasmo do peixe antes do fim, como em “Forquilha”: “o/ homem/ é peixe no (es)cambo,/ um riacho antigo/ de margem quebra-/ da”. Eles oscilam entre a reflexão consciente, portanto triste, e a investigação do sonho, da memória ou do delírio, a atmosfera densa, pesada, assomando em versos como “na carcaça da noite me desespero,/ […] / uma dor pronunciada em esperanto”, ou “a dor, punhal da sorte que me invade,/ papoula rubra que dorme meu infarte”, ou ainda “há um buraco, bem fundo,/ na sombra que me acompanha”. E assim, entre os engasgos e o maravilhamento pelos afetos, como em “Flor de malícia”, “XIV”, “Mãe Nêga” ou “Cigana acrobata”, a segunda parte do livro compõe com a primeira uma poética do sintoma, do poema como cicatriz (no corpo, no pensamento) que é a tatuagem-xilogravura que o mundo deixa impresso em nós quando passa.

Na terceira parte do livro, Azul sereno no anzol, o poeta se metamorfoseia num Bashô-tropical-ameríndio e propõe uma “Teoria do haicaçu”, que é “um poema que possa flertar-flechar, fecho-éclair com o haicai, mas que tenha um sabor de babaçu, a substância da semente na sobrancelha do azulão.”. Fato é que Carvalho Junior, em sua oficina poética, vinha experimentando algumas formas fixas. As duas primeiras partes contam com sonetos quase sempre decassílabos, e estes haicais obedecem, quase todos, ao rigor do 5-7-5 na escansão dos três versos. No entanto, todo o olhar dos poemas é voltado para a paisagem do cerrado maranhense, sua fauna, sua flora, seus habitantes.

Como aludi no começo desta resenha, partiu cedo demais o poeta e amigo Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior, ou Carvalho Junior, como assinava seus poemas. Estávamos em pleno arco da grave pandemia que se abateu sobre o planeta, e com os rumos do país regidos por um (des)governo com traços de fascismo, e, conforme demonstrou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (e não apenas ela, mas o noticiário), mergulhado em corrupção e incompetência, fatos que, aliados ao negacionismo generalizado (com fins instrumentais para a política e aspectos claramente ideológicos), fizeram com que a vacinação da população brasileira fosse postergada em alguns meses, tempo esse que nos custou muito caro – no momento em que escrevemos este texto, as estatísticas contam mais de 680.000 mortos, excluídas, por óbvio, as subnotificações, que só a História poderá, com muita pesquisa de documentos, precisar. A vida de Carvalho Junior é um exemplo do irrecuperável dano causado ao país, num polo, e às famílias, no outro, por este governo que zomba da Constituição, do equilíbrio entre os poderes, e, pior que tudo, do seu povo, entregue a todo tipo de dilapidação.

A vida, entretanto, segue desígnios não raras vezes incompreensíveis, brandindo, diante de nossos olhos, opostos de difícil conciliação, numa dialética que atordoa e não conduz a qualquer síntese, somente nos empurra em direção a um futuro que pode soar sem conexão com tudo o que o antecedeu. Os livros que Carvalho nos legou funcionam como estopins do sentido, aguardando apenas que o acaso – ou nossas buscas pessoais, ou ambos – nos façam folhear suas páginas e descobrir mundos possíveis que o poeta deixou como sinais xilogravados em seus poemas, à espera de corações e mentes ávidos.