2 poemas de RUBERVAM DU NASCIMENTO

 
Provoco noite a errar caminho de volta do exílio da voz
você nunca foi deportado para um país que não existia mais
Acho graça nas pétalas transformadas em buquê de lama
nas ovas em ilusão de bolas de gude na trilha de crustáceos
na dobra da blusa a esconder abelha do beijo mortal da flor
Esmago odor do charuto do mangue a embriagar meu chão
uso cheiro do capim do braço para esfregar frio do nariz
Convenço mimosa a fechar-se ao toque do insulto do dedo
arranco pela raiz erva daninha a sugar água da minha areia
Transporto correr de hora no fundo de palha do meu patuá
colho por onde passo cacos da manhã pisada pelo escuro
Última caravela partiu de dentro de mim carregada de fogo
para irrigar osso no campo de plantio do dia do meu amado
e do sol
 
 
Não adianta cativo da desforra da borduna
fazer pose de senhor do céu do mar da terra
negar à zoada do terreiro naco de seu miolo
declarar-se fundador de escola de mágico
Não adianta querer substituir azedo da fome
no ponto de engolir fatia de ponte de melão
por semente de nuvem caída do tamarisco
Não adianta fingir transportar seu fantasma
exigir pressa à alma a vagar pelo oceano seco
em procissão de exílio ao horizonte de lona
Seu espírito será vomitado por não se permitir
ser derramado em lugar da voz da manhã
da garganta do pântano do meu amado
e do sol
 
 
 
Rubervam Du Nascimento é de São Luís do Maranhão, nordeste do Brasil. Viveu 46 anos em Teresina, capital do Estado do Piauí. Reside atualmente em Santo André, SP. Integrou a Coordenadoria de literatura da revista “Pulsar”, editada no Piauí, na década de 80. Autor dos livros de poemas:  A Profissão dos Peixes; Marco Lusbel Desce ao Inferno; Às Vezes, Criança – Um Quase-Retrato de Uma Infância Roubada, com fotografias de Sérgio Carvalho; Os Cavalos de Dom RuffatoEspólioDandaras. Os poemas aqui publicados pertencem à obra De Dentro de Mim Partiu a Última Caravela.

2 poemas de AMANDA VITAL

AGULHA

meu corpo quente ainda dói da porrada
tenho hematomas por toda a epiderme
respiro balões de oxigênio segurados à
força por aqueles que me querem bem
como fazem com os bichos prematuros
me embalam roupões azuis esverdeados
os lençóis de cama trocados diariamente
a canção da paciente por trás da cortina
o cheiro das pomadas das luvas do éter
mas amanhã o dia se abre às seis horas
tomo café da manhã insosso sem queijo
e aviso que estou disponível para visitas

JOÃO DE BARRO

leva o barro na boca, meu bem, feito um pássaro:
constrói uma casa para dois no topo de uma árvore
centenária, zerada de outros ninhos, numa cidade
relativamente perto da capital. faz um puxadinho
para os livros e discos que compraremos juntos e
os que vamos levar na mudança, o jogo americano,
o vaso de gerânios, o que existe entre você e eu.
leva pequenos galhinhos para adormecermos juntos
numa esteira no chão perto da entrada, porque os
nossos corpos são demasiado quentes para ficarem
tão dentro, porque as nossas asas estão agitadas
diante de todas as possibilidades que conhecemos.
leva o barro no bico, meu bem, e o amor sob a asa.

Amanda Vital é assistente editorial da editora Patuá e co-editora da revista Mallarmargens. Tem bacharelado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais e é mestra em Edição de Texto pela Universidade Nova de Lisboa, trabalhando com a obra poética de Augusto dos Anjos. Autora dos livros Passagem (poemas, Patuá, 2018) e Costura (poemas, Patuá, 2023). Participa de antologias de literatura brasileira contemporânea e tem poemas traduzidos para inglês, espanhol e catalão, publicados em revistas físicas e impressas.

2 poemas de LÍLIAN ALMEIDA

PROCISSÃO

tirei as roupas
ando nua pelas ruas
mirando os olhos das mulheres.

a cada encontro, cada pausa
sou vestida com majestoso traje
de misérias.

dores compõem o tecido
delicado
que me cobre.

em procissão
cada uma segue comigo
tecidas em mim.

caminho placidamente
para o inferno
me recolho ali.

desfaço a trama da veste
para sair nua
outra vez.

AVITO
Para minha avó Antônia

os olhos negros da avó
dizem memórias
anoitecidas na minha pele.

NÊNIA PARA A CLASSE MÉDIA BRASILEIRA

NUNO RAU

Copacabana não tem mais nenhuma livraria. Há trinta anos eram quatro ou cinco, sem contar um ou dois sebos. O bairro de classe média mais adensado do Brasil não tem nenhuma livraria. Cento e cinquenta mil habitantes em cerca de oito quilômetros quadrados, o que, descontando a área de ruas e praças, atinge uma média de quarenta moradores por cada metro quadrado; e nenhuma livraria. Cem quarteirões, setenta e oito ruas, cinco avenidas, seis travessas, três ladeiras e nenhuma livraria. Um IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – de 0,956 e nenhuma livraria. É necessário lembrar que acima de 0,900 o IDH é considerado muito alto. Numa de suas principais avenidas, a Princesa Isabel, circulam em torno de cento e setenta mil carros por dia, mas o bairro não tem nenhuma livraria. Quatro mil pessoas ganham mais de vinte salários-mínimos, mas não há livrarias. Nove mil pessoas ganham entre dez e vinte salários-mínimos, vinte mil ganham entre cinco e dez, cem mil pessoas ganham entre um e cinco salários-mínimos, mas nenhuma livraria. Há em torno de oitenta e duas mil residências, em sua maioria apartamentos que possuem, em média, oitenta e cinco metros quadrados, e nenhuma livraria. Apesar das mudanças na base tecnológica, ainda resistem noventa e dois mil telefones fixos em paralelo aos cento e oitenta mil telefones celulares, mas quase nenhum deles deve ter falado em Drummond ou Bandeira ou Clarice ou Hilda nos últimos meses, porque não há nenhuma livraria no bairro. O consumo de energia elétrica ultrapassa a casa dos novecentos e cinquenta mil quilowatts-hora por mês, mas nenhum deles ilumina uma livraria. Duzentos e quarenta bares, cento e quarenta restaurantes. Nenhuma livraria. Sessenta e um por cento das residências possuem um automóvel, mas não restou nenhuma livraria. Mais de cem hotéis se espalham por suas ruas; nenhuma livraria. Dois mil e novecentos estabelecimentos comerciais, nenhum deles hoje é uma livraria. Mil e cem pequenas fábricas e nenhuma livraria. Seis igrejas católicas, duas igrejas messiânicas, duas igrejas presbiterianas, duas igrejas batistas, três sinagogas e nenhuma livraria. Quatorze escolas municipais, onze escolas estaduais e vinte e cinco escolas particulares pontuam ruas e praças, mas nenhuma livraria. Pelo bairro circulam sete milhões e meio de passageiros por mês, se não contarmos os que vão nos táxis e vans, mas não sobrou nenhuma livraria. O valor médio do metro quadrado de um apartamento ultrapassa os dez mil reais em Copacabana, cerca de cinco mil dólares estadunidenses, mas não existe sequer uma livraria. Se cada habitante do bairro comprasse um livro por ano, seriam vendidos, em média, doze mil livros por mês no bairro, e o faturamento mensal de uma livraria seria algo em torno de setecentos mil reais. Bastava que cada morador comprasse apenas um livro por ano, mas não. Por isso não existe nenhuma livraria. Nem uma.

 

 


Nuno Rau é poeta, escritor, arquiteto, professor de história da arte. Publicou o livro Mecânica Aplicada (2017), poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. É coeditor da revista mallarmargens.com e ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras – IEL.

A ENSAÍSTICA DE MARIO VARGAS LLOSA: Cartas a um jovem escritor

HERASMO BRAGA

Um dos grandes marcos proporcionados pelas grandes ideias é que elas permanecem mesmo quando seus formuladores não se encontram mais fisicamente. O fascínio, ensinamentos, reflexões oriundas delas, tornam possíveis outros teceres em torno delas associados a outrem acrescidas de experiências a serem antes vivenciadas e, posteriormente, compartilhadas. Assim, adita-se aos dias novos sentidos com ampliações de vidas. Fica-se, então, os viveres tecidos nas linhas ficcionais e ensaístas de Mario Vargas Llosa.

Por vezes acontece, pela pressa ou pela mania comparativa, tentar apontar quem foi melhor o Llosa ficcional ou o ensaístico. Desta maneira, constitui-se de maneira pueril sob a égide da absolutização ou da relativação deter um ao outro. Pode-se acrescentar sem nenhum impedimento que o subtexto encontrado no destaque, encontra-se mais o espírito narcísico contemporâneo de se julgar conhecedor de ambos percursos ao ponto de elevar um ou a outro devido a vaidosa (pseudo)propriedade leitora. Equipara-se a escritores promotores de “oficinas criativas” a deixarem seus discípulos/seguidores escolherem se preferem que ele aborde no curso nos mínimos detalhes pouco perceptivos para muitos: Ulisses de James Joyce ou as obras que compõem Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Oferecer essa opção é propagar significativo conhecimento de qualquer uma destas ou até mesmo de outras. Exercer uma vaidade possivelmente estéril de desconhecimento tanto destas como de outras, mas o exercício presunçoso leva os ingênuos a crerem na capacidade e no valor contribuitivo de oferecimento de tais oportunidades.

Posto ao lado tais comportamentos vaidosos e antes de adentrar-se acerca da ensaística de Mario Vargas Llosa em alguns aspectos presente em Cartas a um jovem escritor; importa ter em mente as dificuldades de um crítico em ser ficcionista e de um ficcionista ser crítico. Reconhece-se que o próprio trato com a linguagem constitui uma das principais barreiras. Apesar de ambas buscarem validades em seus mundos, todavia, quando uma atua de maneira desavisada na outra acaba por fragilizar a constituição do argumento ou do mundo sendo desenvolvido. Outro ponto reside na espera do encontro ao ser percebido em cada texto. No crítico: referências, diálogos com outras ideias, aproximação com determinados campos teóricos, observações em aspectos estruturais ou configurativos nos textos, elementos que possibilitam determinadas efeitos, a eficiência ou não de determinadas construções, todos esses pontos mais outros fazem parte do acervo crítico a ser disponibilizado na análise. No caso da ficção são outros elementos tendo como o primeiro o convite a imersão daquele mundo para mais do que pensar, refletir; viver as experiencias por meio de outras vidas presentes no enredo. Perceber e sentir ao longo da intriga transformações significativas por meio das subjetividades das personagens as suas em si. Processo hermenêutico que trespassa o texto ficcional e chega para desbravar-se no próprio sujeito leitor e vivenciador daquele mundo.

Interessante para todos aqueles que minimamente experenciou as leituras de Mario Vargas Llosa tanto ficcional ou ensaístico percebera que não se furta em cada composição os devires em relação cada mundo compartilhado. Na esteira do ensaiamo, além de se ter todos os elementos esperados há algo distintivo: a própria vivência in loco que não extrai apenas uma visão do sujeito formulador das ideias apresentadas, sem cometimento de idealizações já que o próprio texto crítico em si desmontaria tal concepção -; como um prisma irradiador não de múltiplas cores, e sim, de múltiplos sentidos nas quais cada um sentiria na sua singularidade e por movidos por elas, buscar mais imersões formativas que saíssem do simples teorizar, para o estético percebido e sentido diante de algo de fato vivo. Deixar de apenas se informar e de fato por meio das ideias acerca das obras de arte ater-se ao viver por meio das experiências nelas exaladas e compartilhadas que atravessam não apenas os indivíduos nos aspectos históricos, como também, no seu próprio ser em desenvolvimento na ânsia de mais viver.

Tem-se, então, nas primeiras linhas da obra essa dimensionalidade, enuncia Llosa: “o escritor sente intimamente que escrever é a melhor coisa que jamais lhe aconteceu, e pode acontecer, pois escrever significa para ele a melhor maneira possível de viver, independentemente dos resultados sociais, políticos ou financeiros que possa alcançar com o que escreve”. Ter a consciência da escrita é reconhecer a necessidade do compartilhamento formativo. Só é possível ter na publicização de ideias se o autor estiver dotado de experiências acumuladas ao longo da trajetória leitora. Não é possível ter esse envolvimento sem a paixão maior e constante pela leitura. Isso não representa um aspecto idealista que a muitos envaidecem ao destacar-se como conhecedor de inúmeros textos, todavia, a superficialidade acaba por imperar em conjunto com apenas informatividade passageira acerca do dito lido. Llosa tem essa consciência e deixa-se invadir pelo entusiasmo movido nas abordagens expressadas em seus ensaios.

Como ele adverte em certo momento ao longo do livro que ausência da escrita faz manifestar uma sensação dolorosa de se “estar desperdiçando a vida”. Essa ideia constitui algo significativo que se pode relacionar a uma afirmação de Ferreira Gullar ao mencionar que “a arte existe porque só a vida não basta”; sendo assim, sem leitura e o seu transbordar pela escrita a vida é subtraída de vitalidade devido ao comprometimento formativo do indivíduo.

Um dos grandes motivos da precarização das narrativas na contemporaneidade ocorre devido a ênfase excessiva no Eu. Confunde-se narrar com realizar depoimentos que quase na totalidade são dispensáveis. Como ilustra Llosa “a única maneira de saber se o romancista tem sucesso ou fracassa em sua empreitada narrativa é averiguar se, graças à sua escrita, a ficção vive, se emancipa do seu criador e da realidade real e se impõe ao leitor como uma realidade soberana”. Tem-se dois pontos fundamentais: o primeiro consiste na anulação do ego do escritor na escrita. Distanciar-se de si é oferecer vida a narrativa a ser desenvolvida. Quanto mais o autor aproxima-se do narrador mais ele compromete a qualidade e a construção de um “novo mundo”. Os textos de exposição do Eu, no geral exercem apenas manifestações narcísicas e idealizadoras das ilusões de si. Projeta-se no texto nada que se acrescente para outras nem mesmo para o autor. Apenas vaidades desprovidas de qualquer relevância. Percebe-se como nunca esse ponto, principalmente quando se assume posturas reivindicativas e de defesas. Como bem argumenta Llosa, em outro momento tomando como referência Flaubert; de que as narrativas são mais interessantes quando há invisibilidade do narrador porque isso proporciona o leitor deixar de se perceber lendo, e se perceber, como testemunha, ao vivenciar aqueles acontecimentos. Então, se o narrador para o bem do próprio texto deve-se deixar de ser percebido, imagina-se o autor… O outro não tão simples, mas deveria ser obvio, apesar da coexistencialidade entre ficção e realidade que se defende, a literatura não pode ser um reflexo da sociedade, mas uma refratação, desvio para poder se ir mais além das aparências das concretudes. Como tão bem atesta Antonio Candido que os elementos estéticos precedem de outros de outra ordem. A realidade mimética da obra deve constituir como algo autônomo e vivenciado apenas naquele mundo narrativo construído.

Entre outras inúmeras orientações, Mario Vargas Llosa finaliza: “ninguém pode ensinar ninguém a criar; na melhor das hipóteses, podemos aprender a ler e escrever. O restante precisamos ensinar a nós mesmos, tropeçando, caindo e levantando sem cessar”. Assim, deve pautar-se: na constante aprendizagem pela leitura, pela escrita, vivenciando-as e desenvolvendo-se por meio das experiências a serem compartilhadas.

Herasmo Braga é professor e ensaísta

2 poemas de CLARA MELLO

CANTO DA SEREIA

Entre coxas conchas
Ouço o barulho do mar
Amor afoga e transborda
Naufraga meu barco
E me entrega a boia.
Me conta lendas,
Me tira a memória
O amor é aquático
E tem que molhar.
Diz o ditado das ondas
Água mole em carne dura
Bate até a sereia cantar.

SIMPATIA DE DESAMOR

Hoje quase fiz uma macumba pra me desapaixonar por você
Uma oração pra São Cipriano de desamarração
A benção da Pomba Gira para despacho do tesão
Ainda faço a tal simpatia de desamor
As cartas confirmaram e a cigana reforçou
Que é poderosa e me traz o bem amado
Em até três dias, totalmente superado
Deixa o tambor tocar, o samba voltar
Parar de chover
Deixa o sol raiar, eu achar um par
Dançar pra valer
Eu já tô quase livre, você vai ver

Tem quase quinze minutos que eu não penso em você.

Clara Mello nasceu no Piauí, mas mora no Rio de Janeiro com seus gatos Dante e Pinga. É formada em Letras pela UFRJ. Escritora, roteirista, dramaturga e astróloga. A paixão é uma emergência é seu quinto livro, o segundo de poesia.

OUTONO DE CARNE ESTRANHA, de AIRTON SOUZA

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

Subindo as adeus-mamãe, o esforço era tão grande que os garimpeiros, a despeito de suas aparências, já não conseguiam distinguir entre a esperança de bamburrar e o lameiro da cava descendo por seus corpos.” (Cap. 10, p 113) No garimpo de Serra Pelada, na década de 1980, chamavam de adeus-mamãe as imensas e precárias escadas utilizadas para retirar dos barrancos inúmeros sacos de terra e lama, atividade exercida pelos “formigas”. “Arrumou com jeito o saco de cascalhos no ombro e caminhou rumo às adeus-mamãe. Foi subindo as escadas com a crescente vontade de gritar de dor.” (Cap. 6, p 78) Não havia nenhum tipo de segurança e o trabalho era efetuado sob jornadas perigosas e exaustivas. Eram comuns os deslizamentos e desmoronamentos, além do contato contínuo com substâncias tóxicas, como o mercúrio, utilizadas no garimpo.

Já o termo bamburrar remetia à descoberta de alguma pepita de ouro, esperança de riqueza e objetivo maior de todas aquelas pessoas que arriscavam suas vidas na Serra Pelada. “Ao falar bamburrar, a paisagem dentro da boca desadormecia e era como se cada letra daquele nome pesasse todos os vocábulos impossíveis dentro da beleza. […] Bamburrar não era vocábulo. Era horizonte ternurado.” (Cap. 5, p. 61-62) “Bamburrar era a febre terçã para a qual não havia cura nas carnes dos garimpeiros” (Cap. 5, p. 62).

Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2023, e lançado pela Editora Record no ano seguinte, Outono de carne estranha, romance de Airton Souza, ao longo de seus 17 capítulos, acompanha as angústias e esperanças de um punhado de garimpeiros em busca de arrancar do chão do garimpo alguma riqueza que lhes traga melhores condições de vida, para além da própria subsistência, tendo como foco o difícil ambiente de dois garimpeiros envolvidos num relacionamento amoroso homoafetivo na Serra Pelada, no início da década de 1980. “Os dois homens, nuzinhos, trancados no único cômodo do barraco de Zuza, tentavam, de qualquer maneira, atravessar os fonemas das palavras bateia e bamburro, abraçadas, diariamente, às carnes deles.” (Cap. 1, p 14)

Durante 12 anos de atividade, entre 1980, após a descoberta de ouro na Fazenda Três Barras, até 1992, quando foi oficialmente fechada pelo governo brasileiro, o garimpo em Serra Pelada mobilizou mais de 100 mil trabalhadores, provenientes de todas as regiões do país, sobretudo do Norte e Nordeste. Somente nos primeiros meses, mais de 4 mil pessoas já haviam se deslocado para a região. Localizada no estado do Pará, próximo a Marabá, na Serra dos Carajás, estima-se que cerca de 40 mil toneladas de ouro tenham sido extraídas dos 24 mil metros quadrados disponíveis para o garimpo.

Os barrancos, inicialmente, eram disputados diretamente pelos garimpeiros, mas, ainda no início da década de 1980, ocorreu a intervenção do governo federal, tendo como figura central Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o Major Curió, interventor nomeado pelo então presidente João Figueiredo, para administrar o garimpo, incluindo a venda do ouro, que deveria ser feita exclusivamente nos guichês da Caixa Econômica Federal instalados na região.

A história de Manel e Zuza, narrada em Outono de Carne estranha, se desenvolve quando os barrancos do garimpo de Serra Pelada já estavam divididos em diferentes lotes e submetidos a toda uma hierarquia de trabalho e poder, concentrada na figura do personagem marechal e seus capangas, os bate-paus. Observa-se o uso de maiúsculas em alguns nomes próprios e em outros não. Entendi como um efeito significativo, despersonificando palavras como brasília e deus, mas mantendo as maiúsculas das palavras referentes à realidade imediata, como os nomes dos rios e cidades próximas. Em conversa com o autor, Airton me relatou que “a ideia foi diminuir em nós os significados históricos desses lugares e personas. E em contrapartida lançar luzes sobre a região. Invertendo a escala de valores, como modo de vingança em relação a quem nos menosprezou historicamente.

Além de Manel e Zuza, o personagem Zacarias, padre que deixa a batina para dedicar-se ao grimpo, se torna mais uma figura protagonista na obra. No entanto, seu perfil complexo e ambíguo poderia ser mais explorado. Nesse sentido, ficaram algumas lacunas que poderiam ser mais desenvolvidas. Mas é possível que a autor tenha preferido não focar demais em Zacarias para não correr o risco de deixar Zuza e Manel em segundo plano. Porém, Zuza também careceu de maior tratamento. Pouco sabemos de seu passado e de como se deu sua passagem pelo garimpo de Serra Pelada.

Ainda que tenha sido tema de obras cinematográficas, como Serra Pelada, filme dirigido por Heitor Dhalia, em 2013, e estrelado por Júlio Andrade e Juliano Cazarré; Os Trapalhões na Serra Pelada, dirigido por J.B. Tanko, em 1982, e estrelado pelo grupo humorístico Os Trapalhões, além de Louise Cardoso e Gracindo Júnior; bem como o documentário Serra Pelada: A lenda da montanha de ouro, de Victor Lopes, realizado em 2013, pelo tempo em que permaneceu em atividade, pela quantidade de pessoas envolvidas no sonho de bamburrar, pelas dimensões e volume de ouro extraído, é curioso que poucas obras que abordam a Serra Pelada sejam conhecidas do grande público. E nesse sentido, Outono de carne estranha acrescenta uma instigante narrativa a essa lista.

Airton Souza nasceu em Marabá, Pará, no ano de 1982. Apesar de Outono de carne estranha ser sua estreia no romance, o autor se dedica à literatura há bastante tempo, já tendo mais de 40 livros publicados, em diversos gêneros, sobretudo poesia.

Prêmio Sesc de Literatura, finalista do Prêmio São Paulo, na categoria romance de estreia, finalista do prêmio Oceanos, Outono de carne estranha empreendeu uma excelente jornada entre relevantes prêmios e concursos, mas proveio justamente do Sesc, mantenedor do concurso que culminou com a publicação da obra, uma polêmica envolvendo o livro.

Durante a Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, a leitura de Airton do trecho de abertura de seu livro provocou desconforto entre dirigentes do departamento nacional do Sesc, presentes no evento: “Quanto mais socava a pica no cu de Zuza, mais Manel escutava o barulho das picaretas. Dos enxadecos. Das mãos repletas de calos. Das velhas enxadas enferrujadas. Dos pedaços de paus. Das bateias roçando levemente sobre a água. Das pás afundando no chão amarelado dos barrancos e dos paredões, quase acinzentados de terra, que formava a cava” (Cap.1, p. 11). O próprio registo em vídeo do momento foi, dias depois, excluído das páginas de divulgação e registro do evento.

Em resenha publicada na revista Quatro Cinco Um, Renan Quinalha levanta os seguintes questionamentos: “Temos um número cada vez mais significativo de obras literárias que atravessam ou incorporam o universo LGBTQIA+, seja por seus autores e autoras, seja pelas personagens e tramas. Mas será que estamos garantindo essa liberdade apenas quando há uma higienização dessas histórias? Só aceitamos e promovemos quando notamos que o sexual se converteu em afeto, mais fácil de digerir? Só toleramos se os arranjos de desejo se submetem à estrutura tradicional da família patriarcal e da heteronormatividade?

O fato é que tal situação enfrentada pelo autor chegou a culminar na demissão de Henrique Rodrigues, criador e coordenador do Prêmio Sesc, configurando Outono de carne estranha como mais um capítulo nesse enredo de intolerância e puritanismo que caracteriza uma sociedade preconceituosa.

Em tempo, o garimpo em Serra Pelada modificou totalmente a paisagem natural, restando somente uma gigantesca cratera na qual se formou um lago com cerca de 200 metros de profundidade. “O que antes era uma montanha, enchia agora o horizonte de vazio e crueldade.” (Cap. 3, p 36)

 

Referências

QUINALHA, Renan. Amores brutos. Quatro Cinco Um. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/colunas/livros-e-livres/amores-brutos/ Acesso em 20 set. 2024

SAYURI, Juliana. Como foi o garimpo em Serra Pelada? Superinteressante, 04 jul. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-foi-o-garimpo-em-serra-pelada/

SOUZA, Airton. Outono de carne estranha. Rio de Janeiro: Record, 2023.

SOUZA, Airton. Depoimento concedido a Adriano Lobão Aragão. 19 set. 2024.

Adriano Lobão Aragão é autor de Destinerário (poemas e fotografias), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

NATIMORTO

RONALDO CAGIANO

A morte o esperava como um ventre.
Carlos Nejar

Desceu apressado o último lance da ladeira que liga a favela ao asfalto, tênue a fronteira entre dois mundos.

Embaixo, a agitação feérica em tudo difere da camaradagem do morro, onde a comunidade se (re)conhece nas solidárias demandas de cada dia.

O dorso à mostra decalcado de tatuagens: uma caveira nas costas, a estrela de David no peito, versículo dos Provérbios na panturrilha esquerda, Sandra esculpida no ventre e o rosto de Che no calcanhar direito. Apenas um short, suado da caminhada sob o calor implacável, a epiderme expondo-se como um outdoor de mensagens, textos e traços que se misturam num convívio simbiótico de expressões religiosas e políticas. O marxismo e a bíblia lado a lado, o insondável por testemunha.

O guri continua seu passo, numa das mãos uma sacola vazia, o cabelo de um louro artificial recebendo os raios de um sol escaldante, o trânsito ali impedindo-o de vencer o espaço que o separa da outra ponta, onde a avenida é um boulevard de ofertas, um pout-pourri de gente a caminho do trabalho ou de casa, outros em busca de alguma coisa, vai-e-vem de passos antagônicos, no entretempo dos que-fazeres e olhos que se cruzam e não se veem.

Uma senhora de óculos com lentes fundo-de-garrafa, entre balbucios inaudíveis, divide com ele a atenção no fluxo divergente de automóveis, mas recua depois de tentar em vão ziguezaguear entre o escorrer da centopeia metálica naquele meio-dia repleto de velocidade e urgências. Vai-não-vai, passos indecisos em  meio ao trânsito que se retroalimenta numa fluidez descomunal. Os dois ali, estáticos e inermes, diante da força bruta do movimento que parece nunca ter fim.

Ergue-se na ponta dos pés e reconhece na calçada oposta a figura de Wesley, o parceiro das quebradas, a quem grita pelo apelido: “Baiano, ô, Baiano!”, expande a voz num ricochete inócuo e ainda mais uma vez insiste no apelo, mas o “parça” segue sem ouvir o chamado, certamente sua audição impugnada pelo burburinho e estridência dos sons na hora do rush. E sua figura se esfuma no emaranhado de vozes, sons e imagens da metrópole apressurada. Anônimo e resoluto, como areia  na ampulheta, continua na apreensiva tentativa de seguir em direção ao seu destino.

Nem bem o semáforo alternou-se para o verde, a mulher já a meio da via só escutou o barulho surdo do projétil que o derrotaria naquela sexta-feira sem outra novidade qualquer, senão o calvário de que são feitas certas vidas.

Para não tumultuar o trânsito, uns poucos que flagraram o acontecimento antes de a Polícia chegar, retiraram o corpo (silenciado, pálido, já desligado da feroz mecânca daquele dia), a sacola de plástico já havia se extraviado com o aparato de ventos naquele corredor de veículos e motos, um chinelo ainda guarnecia um dos pés.  Entre a indiferença e o temor, curiosos olhavam de soslaio; um bêbado chegou com uma vela e colocou-a rente à cabeça do cadáver, que não trazia celular nem documentos, somente no bolso uma bagana pela metade que já se encharcava com o fio vermelho a escorrer vultoso do lado esquerdo inundando-lhe a epiderme como uma severa e sinistra pichação.

                                                                                                              

Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e está radicado em Portugal. Formado em Direito, é autor, dentre outros, de Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP, Prêmio Jabuti 2016); Cartografia do abismo (Poesia, Ed. Laranja Original, SP, 2020) e Arsenal de vertigens (Poemas, Ed. Húmus, Lisboa, 2022).

CAROLINA, MEU AMOR

WAGNER LEMOS

Machado de Assis amou intensamente. O autor que, segundo Antônio Candido, vale por toda uma literatura, teve em Carolina, sua esposa, um dos mais significativos amores e que foi traduzido em poema na forma de saudade, quando ela se foi desta terra material. Luiz Gonzaga também versejou e cantou uma Carolina, personagem que, na canção, aparecia faceira e intrépida exaltando até mesmo uma grafia de seu nome diferente da habitual. Confesso que também me quedei e quedo de amores por uma Carolina. Com Machado e Gonzaga, mantenho as intersecções de sermos homens negros dedicados à prosa e ao verso, encantados por uma Carolina.

Admito que a paixão por ela veio, não nos arroubos da adolescência, em que a cabeça perde o norte e o coração desmantela por inteiro. Na época, com uns trinta e muitos anos, já tendo uns fios brancos nas têmporas, foi que nosso encontro aconteceu. Ela me seduziu pelas coisas que mais me encantam: sensibilidade, inteligência e dom da palavra. O verbo se fez carne: a sua palavra ecoou em mim e me fez ver as afinidades. Ela, sorrateira, encontrou em nossas semelhanças o jeito de me prender nos seus fios invisíveis. Desde, então, estou emaranhado nela. Já passei dos quarenta anos e já coleciono mais fios brancos para além das têmporas. No entanto, a paixão não esmoreceu. Pelo contrário, ganhou corpo e tonificou em amor.

Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960), é a senhora dos anseios e inquietações deste aprendiz de escriba.  Suas palavras, frutos da agudeza de suas retinas atentas ao mundo, pude ter a dimensão para compreender quem sou, quem somos. Nos momentos em que faltaram palavras para traduzir o quanto me sentia vindo da periferia e tendo a discriminada pele negra, Carolina, bem antes de eu nascer, já fizera isso. Isso indicava, porém, que de seu tempo ao meu, nada mudara. Nós, negros, continuávamos sendo escanteados a uma condição de pobreza, num crônico racismo estrutural. Nós, negros, continuávamos relegados ao olhar de desprezo para a cor da noite gravada em nossa pele.

De catadora de papel a empregada doméstica, passando por fenômeno editorial, depois esquecida ao ponto de novamente catar papel, Carolina soube muito mais deste país do que aqueles que, dentro de gabinetes, se arvoram a ser intérpretes da nação. Seu senso de realidade a fazia entender o país de modo a afirmar que só teríamos prumo, quando o governante fosse alguém que tivesse conhecido a fome. Não há afirmação mais certeira. Aquele que detiver o poder decisório precisa bem mais do que a empatia. Precisa de sua dose particular de realidade. O mais triste nisso tudo, é que os escritos de Carolina não deixaram de ser sobremodo atuais diante do que vivenciamos no país. Afinal, disse ela “não é preciso ser letrado para compreender que o custo de vida está nos oprimindo”. Com razão, também escreveu na última página de seu mais famoso livro: “a pior coisa do mundo é a fome”. Ela sabia do que falava. Carolina, meu amor.

Wagner Lemos é doutor em Literatura Brasileira (USP) com pós-doutorado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e líder do Grupo de Pesquisa em Literatura e História (CNPq/UNEB). Autor de Sergipe entre Literatura e História, Tempo de Mangaba; De Sílvio Romero para sua gente, Sílvio Romero e José Veríssimo em combate e organizador da Antologia Escolar da Literatura Brasileira e de Belle Époque e sertão: a linguagem em busca do Brasil; tem no prelo sua 1ª obra infantil, A menina que colhia estrelas.

A ESTRANHEZA DAS IMAGENS DE LYNCH

 WANDERSON LIMA

  

A filmografia de David Lynch utiliza dispositivos que nos imergem em uma experiência de perda do senso de realidade. Somos conduzidos a um estado de desconforto que, por alguns instantes, desnaturaliza nossos hábitos e práticas cotidianas. Esse breve hiato, dependendo do espectador, pode culminar em um frenesi inconsequente ou servir como ponto de partida para uma reflexão mais profunda. De qualquer forma, é nesse processo que reside a singularidade e a força do cinema de Lynch: mais do que narrar histórias de maneira convencional, ele se dedica a criar atmosferas[1]; mais do que ensinar lições ou defender ideologias, ele busca convocar sensações.

Se quisermos precisar melhor quais dispositivos, diremos que Lynch oscila entre a noção clássica de grotesco estabelecida por Wolfgang Kayser – a desfiguração do familiar, que conduz a uma sensação de inquietação e deslocamento e que combina o cômico e o aterrorizante, criando um efeito de ambiguidade e tensão – e o estranho (Unheimlich) estudado por Sigmund Freud, isto é, a ideia de algo que deveria ser reconfortante, mas que é transfigurado em algo desconcertante ou ameaçador.  Em sua forma mais intensa, o Unheimlich pode ser um retorno do inconsciente, uma manifestação de medos e desejos reprimidos, que rompe com a segurança do conhecido. Seja como for, por meio do grotesco ou do estranho[2], quando assistimos Lynch nos falta o chão: o familiar se transmuta em infamiliar, o cotidiano se torna insólito. Essa mescla de distorção e retorno do reprimido é central nas obras de Lynch, onde o cotidiano e o aparentemente comum se tornam cenários de estranhamento e incerteza.

Se observamos bem, essa sensação de desconforto e de perda do real, em si, não é revolucionária ou transformadora. Em boa parte de suas manifestações, em comunidades abrigadas nas redes sociais e em subgêneros da cultura gótica e heavy metal, o grotesco e o estranho tornam-se mecanismos escapistas, fuga do mundo adulto racionalizado, ou meras manifestações de irreverência. Mas, em Lynch, torna-se uma estratégia para construir um mundo muito próprio e lançar questionamentos que, em última estância, nos convidam a pensar a complexidade do real para além dos parâmetros realistas e pragmáticos da representação clássica hollywoodiana[3]. Como instava Luis Buñuel[4], o que certamente converge com a prática de David Lynch, o cinema não deve se limitar a reproduzir a realidade objetiva, mas sim transformá-la e transcendê-la por meio de uma abordagem poética.

Buñuel e Lynch transformam o banal em algo extraordinário e perturbador, mostrando que o cinema pode ser muito mais do que uma simples ferramenta narrativa. Para ambos, o cinema é uma arte capaz de acessar o que está além da palavra, penetrando nos mistérios da mente humana e no imaginário coletivo. No entanto, enquanto Buñuel, mais crítico e iconoclasta, recorre à poesia das imagens para desmontar as convenções sociais e religiosas e desvelar as contradições do mundo burguês, usando sonhos e imagens irracionais para explorar desejos, medos e tabus ocultos, Lynch — embora também expresse as contradições entre moralidade pública e desejos sombrios — busca uma poesia cinematográfica mais na atmosfera e no poder sensorial das imagens e sons do que na subversão ou exposição direta das contradições sociais.

Podemos afirmar que, em David Lynch, o desconforto gerado pela ausência de solidez no mundo e pelo bizarro que corrói a norma constitui a etapa destrutiva de seu trabalho. É possível que nos estacionemos nesse ponto, encerrando nossa experiência estética em uma visita — fascinante para uns, angustiante para outros — a um mundo grotesco. No entanto, podemos dar um salto além se compreendermos que, em Lynch, ao movimento de contração segue-se um movimento de expansão: primeiro, perdemos o mundo; depois, descobrimos que ele é muito mais amplo do que imaginávamos.

Além de um olhar automatizado, que desmagiciza nossa fruição das imagens, tendemos a estabelecer fronteiras muito nítidas entre o real, o imaginário e o onírico. Lynch propõe um retorno à inocência e ao embaralhamento pré-lógico das fronteiras. Ele desce às fontes turvas do inconsciente[5] de onde extrais padrões transpessoais – arquétipos – para moldar grande parte de seus personagens. Seus filmes emergem, pois, do choque entre sua peculiar bizarrice e os modelos universais facilmente identificáveis, e por isso se parecem com um misto de pesadelo e conto de fadas.

Até mesmo nos curta-metragens, Lynch encena como que uma epifania da realidade: tudo o que vemos torna-se infamiliar, misterioso – e nisso vislumbramos um significado mais profundo ou uma verdade subjacente de algo na realidade. O grande problema, a meu ver, é a difícil decodificação desta verdade. Trata-se de uma obra resistente à lógica redutora da interpretação. As imagens de Lynch não constituem um sistema organizado que pode ser trivializado em algum discurso edificante. São imagens poéticas, lúdicas, que mantêm seu núcleo de mistério. Muito se discute se Lynch é ou não um artista surrealista; independentemente disso, há um ponto que ele compartilha com esse movimento: a tentativa de extrair, do fundo do ser, imagens puras, não racionalizáveis, e, portanto, resistentes a uma redução alegórica.

A palavra mistério, frequentemente evocada aqui, está no cerne da experiência religiosa, tal como descrita pela fenomenologia do sagrado[6]. O misterium tremendum — aquele misto de assombro e fascínio que o ícone sagrado ou a experiência epifânica desperta no homo religiosus — é algo que o cinema de Lynch tenta infundir nas imagens de seus filmes. Contudo, essa busca não carrega um propósito de proselitismo religioso. Para Lynch, religião e mito não são objetos de reverência, mas repositórios das grandes imagens que sintetizam os dilemas da condição humana. Ele os utiliza como ferramentas para insuflar estranhamento e densidade em seus personagens e nas situações que vivem.

O resultado é um misterium tremendum profano, uma experiência que nos obriga a questionar nossos sentidos e a reaprender a enxergar o mundo. Diante imagens lynchianas, somos tomados por um sentimento de ignorância, um estado de perplexidade que exige tempo para digerir e decifrar. Essa convivência prolongada com as imagens nos conduz a uma outra forma de experimentar a arte, uma que privilegia as sensações e recusa a facilidade do jogo alegórico imediato — algo raro no cinema de cunho comercial.

Essa desorientação positiva diante da resistência hermenêutica da imagem se complexifica mais porque, como mencionado, em Lynch sonho e o delírio não se deixam separar do que se toma por real. A desorientação, que em filmes mais abertamente comerciais é geralmente temporária e estratégica, percorre as obras de Lynch de ponta a ponta, frequentemente sem oferecer uma resolução no desfecho. Para muitos espectadores, lidar com essas irresoluções e com um universo denso, onde as camadas de significado se confundem, é um desafio. Isso porque, em Lynch, não há qualquer aviso de que estamos adentrando um mundo fabuloso. O cinema de Lynch não é fantástico, mas faz brotar o fantástico no cerne da normalidade. O realismo fílmico não é descartado de imediato.

Assim como no Luis Buñuel de sua fase madura, Lynch preserva a representação clássica típica dos filmes comerciais apenas para subvertê-la em algum momento. A estrutura da narrativa policial, por exemplo, é evocada em seus elementos centrais — como a busca pelo assassino —, mas se dissolve em um jogo de imagens oníricas e imaginadas, que tratam a pseudotrama policial com total indiferença. Lynch utiliza o realismo não como um fim, mas como um veículo para transcender suas próprias limitações.

Os amantes da verossimilhança, do enredo de causa e consequência, da encenação pragmática podem se incomodar e querer capitular. Custa caro romper a aliança, há muito celebrada na indústria cinematográfica, entre cinema narrativo e prazer visual. Mas quem tiver paciência verá que Lynch não é apenas um brincalhão ou um surrealista fora do tempo: ao confundir os planos da existência (real, onírico e imaginário) e liberar sua sombra pessoal, o cineasta nos brinda com narrativas grotescas que oferecem um mundo mais integral do que o realismo social diurno, predominante no cinema americano, no qual o CGI é a única concessão ao sonho e ao delírio.

O espetacular, em Lynch, não se manifesta como tiro, porrada e bomba, mas como algo profundamente entrelaçado à vida cotidiana. Não há uma separação rígida entre a existência comum e o sobrenatural ou o mistério. O que Lynch apresenta é o homem em sua totalidade, inserido em um real que transcende a ordem material captada pela câmera. Pois o homem sonha, delira e imagina — e esses elementos, longe de serem ilusórios, também pertencem à ordem do real.

Refletindo sobre o grotesco, Wolfgang Kayser apresenta argumentos que encontram ressonância no trabalho de David Lynch. Kayser sugere que o grotesco adquire especial relevância na modernidade, quando o ser humano perde o senso de unidade e segurança em relação ao mundo. Nesse contexto, o grotesco emerge como uma resposta artística à crise existencial e à fragmentação da realidade contemporânea. É nesse terreno que se inscreve a obra de Lynch. Contudo, em Lynch, há um esforço para transcender essa fragmentação por meio da sobreposição, na trama fílmica, dos âmbitos objetivos e subjetivos da experiência humana. O resultado dessa sobreposição não é a restituição de uma totalidade perdida, mas a integração do homo demens (irracional, emocional e poético) ao homo sapiens (racional)[7], do homem que sonha ao homem que trabalha, do bárbaro ao civilizado.  Incorporar o sapiens ao demens, reconhecendo a importância da imaginação, do delírio e do sonho na construção de uma psique mais equilibrada, diria até de uma sociedade mais equilibrada, é uma tarefa de relevo que Lynch realizou como poucos.

Wanderson Lima é professor e escritor. Doutor em Literatura Comparada pela UFRN, estuda as confluências entre mito, literatura e cinema. Publicou, entre outros, Ensaios sobre literatura e cinema (Horizonte, 2019) e a obra poética Palinódia (Elã, 2021). 

[1] Para Gumbrecht, a atmosfera é central à experiência estética, pois permite que o espectador interaja com a obra de arte em um nível pré-reflexivo, sem necessariamente buscar decifrar seu significado. Em vez disso, a atenção se volta para como a obra faz sentir. Isso desafia abordagens hermenêuticas centradas exclusivamente na interpretação e na extração de significados. A atmosfera não se limita ao significado do objeto, mas envolve o impacto físico e emocional que a obra exerce. Ver mais em: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio, 2010.

[2] A caracterização aqui é demasiado sumária. Para um aprofundamento das duas noções, ver: KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva, 1986. E também: FREUD, Sigmund. “O inquietante”. História de uma neurose infantil (O homem dos lobos): além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 328-376.

[3] Sumariamente, David Bordwell assim caracteriza o padrão da narrativa clássica de um filme hollywoodiano:  1) a narrativa é guiada por personagens que têm desejos claros e objetivos bem definidos; 2) o estilo visual é transparente, ou seja, as técnicas cinematográficas (edição, movimentos de câmera, iluminação) são projetadas para não chamar atenção para si mesmas; 3) a história é apresentada de forma clara, com um início, meio e fim bem definidos; 4) cada evento tem uma função na narrativa, com uma lógica de causa e consequência; 5) não há elementos narrativos “gratuitos”; tudo serve para avançar a trama ou desenvolver os personagens; 6) as histórias têm resolução completa, fechando os arcos narrativos e eliminando ambiguidades. Para um maior aprofundamento, ver: BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. In: RAMOS, Fernão (org.). Teoria contemporânea do cinema 2. São Paulo: Senac, p. 227-301.

[4] As ideias de Buñuel sobre cinema de poesia podem ser conferidas em: BUÑUEL, Luis (1991) “Cinema: instrumento de poesia”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, p. 333-337.

[5] Penso aqui nas ideias sobre o inconsciente – pessoal e coletivo – de Carl Jung. Ver em: JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.

[6]  Rudolf Otto define o sagrado como o “totalmente outro” (ganz Andere), algo que está além da compreensão humana e se revela como uma presença misteriosa. Essa experiência é irracional no sentido de que não pode ser completamente explicada ou compreendida pela lógica ou pelos conceitos. O mysterium tremendum é uma expressão central em sua obra e caracteriza a experiência emocional diante do sagrado. Ver mais em: OTTO, Rudolf. O sagrado. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

[7] O debate sobre o Homo sapiens-demens está em Edgar Morin. Morin questiona o paradigma cartesiano, que privilegia a razão e separa o sujeito do objeto, o pensamento da emoção e o humano do não humano, e propõe que a condição humana deve ser entendida em sua totalidade e contradição. Ver, entre outras obras do autor: MORIN, Edgar. El paradigma perdido: ensayo de bioantropologia. Barcelona: Editorial Kairós, 2005.