2 poemas de LÍLIAN ALMEIDA

PROCISSÃO

tirei as roupas
ando nua pelas ruas
mirando os olhos das mulheres.

a cada encontro, cada pausa
sou vestida com majestoso traje
de misérias.

dores compõem o tecido
delicado
que me cobre.

em procissão
cada uma segue comigo
tecidas em mim.

caminho placidamente
para o inferno
me recolho ali.

desfaço a trama da veste
para sair nua
outra vez.

AVITO
Para minha avó Antônia

os olhos negros da avó
dizem memórias
anoitecidas na minha pele.

NÊNIA PARA A CLASSE MÉDIA BRASILEIRA

NUNO RAU

Copacabana não tem mais nenhuma livraria. Há trinta anos eram quatro ou cinco, sem contar um ou dois sebos. O bairro de classe média mais adensado do Brasil não tem nenhuma livraria. Cento e cinquenta mil habitantes em cerca de oito quilômetros quadrados, o que, descontando a área de ruas e praças, atinge uma média de quarenta moradores por cada metro quadrado; e nenhuma livraria. Cem quarteirões, setenta e oito ruas, cinco avenidas, seis travessas, três ladeiras e nenhuma livraria. Um IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – de 0,956 e nenhuma livraria. É necessário lembrar que acima de 0,900 o IDH é considerado muito alto. Numa de suas principais avenidas, a Princesa Isabel, circulam em torno de cento e setenta mil carros por dia, mas o bairro não tem nenhuma livraria. Quatro mil pessoas ganham mais de vinte salários-mínimos, mas não há livrarias. Nove mil pessoas ganham entre dez e vinte salários-mínimos, vinte mil ganham entre cinco e dez, cem mil pessoas ganham entre um e cinco salários-mínimos, mas nenhuma livraria. Há em torno de oitenta e duas mil residências, em sua maioria apartamentos que possuem, em média, oitenta e cinco metros quadrados, e nenhuma livraria. Apesar das mudanças na base tecnológica, ainda resistem noventa e dois mil telefones fixos em paralelo aos cento e oitenta mil telefones celulares, mas quase nenhum deles deve ter falado em Drummond ou Bandeira ou Clarice ou Hilda nos últimos meses, porque não há nenhuma livraria no bairro. O consumo de energia elétrica ultrapassa a casa dos novecentos e cinquenta mil quilowatts-hora por mês, mas nenhum deles ilumina uma livraria. Duzentos e quarenta bares, cento e quarenta restaurantes. Nenhuma livraria. Sessenta e um por cento das residências possuem um automóvel, mas não restou nenhuma livraria. Mais de cem hotéis se espalham por suas ruas; nenhuma livraria. Dois mil e novecentos estabelecimentos comerciais, nenhum deles hoje é uma livraria. Mil e cem pequenas fábricas e nenhuma livraria. Seis igrejas católicas, duas igrejas messiânicas, duas igrejas presbiterianas, duas igrejas batistas, três sinagogas e nenhuma livraria. Quatorze escolas municipais, onze escolas estaduais e vinte e cinco escolas particulares pontuam ruas e praças, mas nenhuma livraria. Pelo bairro circulam sete milhões e meio de passageiros por mês, se não contarmos os que vão nos táxis e vans, mas não sobrou nenhuma livraria. O valor médio do metro quadrado de um apartamento ultrapassa os dez mil reais em Copacabana, cerca de cinco mil dólares estadunidenses, mas não existe sequer uma livraria. Se cada habitante do bairro comprasse um livro por ano, seriam vendidos, em média, doze mil livros por mês no bairro, e o faturamento mensal de uma livraria seria algo em torno de setecentos mil reais. Bastava que cada morador comprasse apenas um livro por ano, mas não. Por isso não existe nenhuma livraria. Nem uma.

 

 


Nuno Rau é poeta, escritor, arquiteto, professor de história da arte. Publicou o livro Mecânica Aplicada (2017), poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. É coeditor da revista mallarmargens.com e ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras – IEL.

A ENSAÍSTICA DE MARIO VARGAS LLOSA: Cartas a um jovem escritor

HERASMO BRAGA

Um dos grandes marcos proporcionados pelas grandes ideias é que elas permanecem mesmo quando seus formuladores não se encontram mais fisicamente. O fascínio, ensinamentos, reflexões oriundas delas, tornam possíveis outros teceres em torno delas associados a outrem acrescidas de experiências a serem antes vivenciadas e, posteriormente, compartilhadas. Assim, adita-se aos dias novos sentidos com ampliações de vidas. Fica-se, então, os viveres tecidos nas linhas ficcionais e ensaístas de Mario Vargas Llosa.

Por vezes acontece, pela pressa ou pela mania comparativa, tentar apontar quem foi melhor o Llosa ficcional ou o ensaístico. Desta maneira, constitui-se de maneira pueril sob a égide da absolutização ou da relativação deter um ao outro. Pode-se acrescentar sem nenhum impedimento que o subtexto encontrado no destaque, encontra-se mais o espírito narcísico contemporâneo de se julgar conhecedor de ambos percursos ao ponto de elevar um ou a outro devido a vaidosa (pseudo)propriedade leitora. Equipara-se a escritores promotores de “oficinas criativas” a deixarem seus discípulos/seguidores escolherem se preferem que ele aborde no curso nos mínimos detalhes pouco perceptivos para muitos: Ulisses de James Joyce ou as obras que compõem Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Oferecer essa opção é propagar significativo conhecimento de qualquer uma destas ou até mesmo de outras. Exercer uma vaidade possivelmente estéril de desconhecimento tanto destas como de outras, mas o exercício presunçoso leva os ingênuos a crerem na capacidade e no valor contribuitivo de oferecimento de tais oportunidades.

Posto ao lado tais comportamentos vaidosos e antes de adentrar-se acerca da ensaística de Mario Vargas Llosa em alguns aspectos presente em Cartas a um jovem escritor; importa ter em mente as dificuldades de um crítico em ser ficcionista e de um ficcionista ser crítico. Reconhece-se que o próprio trato com a linguagem constitui uma das principais barreiras. Apesar de ambas buscarem validades em seus mundos, todavia, quando uma atua de maneira desavisada na outra acaba por fragilizar a constituição do argumento ou do mundo sendo desenvolvido. Outro ponto reside na espera do encontro ao ser percebido em cada texto. No crítico: referências, diálogos com outras ideias, aproximação com determinados campos teóricos, observações em aspectos estruturais ou configurativos nos textos, elementos que possibilitam determinadas efeitos, a eficiência ou não de determinadas construções, todos esses pontos mais outros fazem parte do acervo crítico a ser disponibilizado na análise. No caso da ficção são outros elementos tendo como o primeiro o convite a imersão daquele mundo para mais do que pensar, refletir; viver as experiencias por meio de outras vidas presentes no enredo. Perceber e sentir ao longo da intriga transformações significativas por meio das subjetividades das personagens as suas em si. Processo hermenêutico que trespassa o texto ficcional e chega para desbravar-se no próprio sujeito leitor e vivenciador daquele mundo.

Interessante para todos aqueles que minimamente experenciou as leituras de Mario Vargas Llosa tanto ficcional ou ensaístico percebera que não se furta em cada composição os devires em relação cada mundo compartilhado. Na esteira do ensaiamo, além de se ter todos os elementos esperados há algo distintivo: a própria vivência in loco que não extrai apenas uma visão do sujeito formulador das ideias apresentadas, sem cometimento de idealizações já que o próprio texto crítico em si desmontaria tal concepção -; como um prisma irradiador não de múltiplas cores, e sim, de múltiplos sentidos nas quais cada um sentiria na sua singularidade e por movidos por elas, buscar mais imersões formativas que saíssem do simples teorizar, para o estético percebido e sentido diante de algo de fato vivo. Deixar de apenas se informar e de fato por meio das ideias acerca das obras de arte ater-se ao viver por meio das experiências nelas exaladas e compartilhadas que atravessam não apenas os indivíduos nos aspectos históricos, como também, no seu próprio ser em desenvolvimento na ânsia de mais viver.

Tem-se, então, nas primeiras linhas da obra essa dimensionalidade, enuncia Llosa: “o escritor sente intimamente que escrever é a melhor coisa que jamais lhe aconteceu, e pode acontecer, pois escrever significa para ele a melhor maneira possível de viver, independentemente dos resultados sociais, políticos ou financeiros que possa alcançar com o que escreve”. Ter a consciência da escrita é reconhecer a necessidade do compartilhamento formativo. Só é possível ter na publicização de ideias se o autor estiver dotado de experiências acumuladas ao longo da trajetória leitora. Não é possível ter esse envolvimento sem a paixão maior e constante pela leitura. Isso não representa um aspecto idealista que a muitos envaidecem ao destacar-se como conhecedor de inúmeros textos, todavia, a superficialidade acaba por imperar em conjunto com apenas informatividade passageira acerca do dito lido. Llosa tem essa consciência e deixa-se invadir pelo entusiasmo movido nas abordagens expressadas em seus ensaios.

Como ele adverte em certo momento ao longo do livro que ausência da escrita faz manifestar uma sensação dolorosa de se “estar desperdiçando a vida”. Essa ideia constitui algo significativo que se pode relacionar a uma afirmação de Ferreira Gullar ao mencionar que “a arte existe porque só a vida não basta”; sendo assim, sem leitura e o seu transbordar pela escrita a vida é subtraída de vitalidade devido ao comprometimento formativo do indivíduo.

Um dos grandes motivos da precarização das narrativas na contemporaneidade ocorre devido a ênfase excessiva no Eu. Confunde-se narrar com realizar depoimentos que quase na totalidade são dispensáveis. Como ilustra Llosa “a única maneira de saber se o romancista tem sucesso ou fracassa em sua empreitada narrativa é averiguar se, graças à sua escrita, a ficção vive, se emancipa do seu criador e da realidade real e se impõe ao leitor como uma realidade soberana”. Tem-se dois pontos fundamentais: o primeiro consiste na anulação do ego do escritor na escrita. Distanciar-se de si é oferecer vida a narrativa a ser desenvolvida. Quanto mais o autor aproxima-se do narrador mais ele compromete a qualidade e a construção de um “novo mundo”. Os textos de exposição do Eu, no geral exercem apenas manifestações narcísicas e idealizadoras das ilusões de si. Projeta-se no texto nada que se acrescente para outras nem mesmo para o autor. Apenas vaidades desprovidas de qualquer relevância. Percebe-se como nunca esse ponto, principalmente quando se assume posturas reivindicativas e de defesas. Como bem argumenta Llosa, em outro momento tomando como referência Flaubert; de que as narrativas são mais interessantes quando há invisibilidade do narrador porque isso proporciona o leitor deixar de se perceber lendo, e se perceber, como testemunha, ao vivenciar aqueles acontecimentos. Então, se o narrador para o bem do próprio texto deve-se deixar de ser percebido, imagina-se o autor… O outro não tão simples, mas deveria ser obvio, apesar da coexistencialidade entre ficção e realidade que se defende, a literatura não pode ser um reflexo da sociedade, mas uma refratação, desvio para poder se ir mais além das aparências das concretudes. Como tão bem atesta Antonio Candido que os elementos estéticos precedem de outros de outra ordem. A realidade mimética da obra deve constituir como algo autônomo e vivenciado apenas naquele mundo narrativo construído.

Entre outras inúmeras orientações, Mario Vargas Llosa finaliza: “ninguém pode ensinar ninguém a criar; na melhor das hipóteses, podemos aprender a ler e escrever. O restante precisamos ensinar a nós mesmos, tropeçando, caindo e levantando sem cessar”. Assim, deve pautar-se: na constante aprendizagem pela leitura, pela escrita, vivenciando-as e desenvolvendo-se por meio das experiências a serem compartilhadas.

Herasmo Braga é professor e ensaísta