MAU PRESSÁGIO

VANESSA TEODORO TRAJANO

Manoela era uma daquelas jovens mulheres cuja tristeza funcionava como uma espécie de adereço, capaz de sorver a atenção alheia feito entidade ou qualquer figura que o valha. Chegava a ser alucinógena.

Para além desse detalhe, ela tinha – talvez seja impossível nominar com fidelidade – um sestro ou mania de escandalizar-se sempre que via alguém descascar o esmalte com as unhas. Um dia, acertou-me uma palmada ao ver que me dava a esse prazer, e perdi a coragem de confrontá-la, pois a bonita se pôs a choramingar logo em seguida – aí eu quem derreti vendo-a em tal estado. Ela se liquefazia e ainda assim permanecia intacta.

Devia haver algum motivo especial, porém evitei descobrir – vai que desencantava? Às vezes, o melhor remédio para o amor é desconhecer.

E ela era tão afeita à sua vazão submersa, que eu só quis encostar na sombra e usufruir, sem fazer alarido. Nem tudo era ruim. Estávamos entregues, desde os últimos meses até sabe-se lá quando.

Por isso, propus somarmos as dívidas e a rotina e partimos para um modesto apartamento pertinho da praia. Durante a mudança, perdemos coisas e quebramos outras, no entanto nada reteve mais a minha atenção do que aquele recorte de jornal, cuidadosamente enfiado na fundura de uma caixinha de lembranças, as quais nunca compartilhou comigo, fosse por egoísmo ou individualismo cruel; nele o seu rosto atravessava o choque que havia sido a perda da mãe, num acidente de ônibus. Dele foi sobrevivente, a contragosto, dado os olhinhos apartados da alma. No texto, uma pequena entrevista com o milagre da vez: o que fez o motorista perder o controle? Manoela não sabia: descascava as unhas no exato momento da tragédia.

Tive o cuidado de recolocar o artefato em seu devido lugar, e se ela se escafedesse se soubesse que eu sabia? Se eu mesma agora quisesse sumir? Antes a penumbra a qual estava habituada, o amor é insustentável na ausência de um segredo.

A vida foi passando e tentei boicotá-la, amor, as suas unhas precisam de um retoque, e me metia a descamá-las, embora levasse um tabefe, como tinha a audácia de desobedecê-la em seu trauma inexplicável-agora-compreensível? Municiada pelas minhas investigações, busquei arrancar dela o porquê de tamanha reatividade. Aquela mulher se desmontou inteira, então me vi obrigada a me conformar com mais uma desculpa mal contada e ficamos “de bem”.

A saída para a teima sem fim era cultivar um pequeno ato de rebeldia conjugal na sua ausência. Acontece é que, numa dessas, depois de arrancar com perfeição a tintura, bateram à minha porta dois policiais com certo ar de consternação.

Longe de desconfiar de imediato a desgraça que me traziam, perguntei o que queriam, e me disseram, sem muito rodeio, a Manoela foi atropelada a algumas quadras de casa. É óbvio que a minha intenção primeira foi saber para qual hospital levaram-na, coitada, devia estar precisando de mim, e eles se entreolharam, dessa vez hesitantes e talvez sensíveis demais para a farda: ela está morta, senhora. Lamento.

Arregalei os olhos e, depois de alguns instantes que não saberei mensurar, avistei a cabeça dos dedos completamente limpos. Lembrei de perguntar: se matou ou morreu?

É certo que estranharam a questão, por que a colocava à mesa numa hora daquelas, em que eu deveria, como boa esposa, desmaiar e estrangular as pálpebras, mas, de repente, a iminência de um presságio pareceu-me mais urgente – eu teria o resto da vida para chorar a morte dela.

Não sabemos ainda, responderam. Nos acompanhe, por favor.

Vou tomar uma água primeiro. Um momento.

Eles me deram o tempo necessário, aprovei a conduta. Pelo menos não eram uns brutamontes. Daí pensei que, se ela estivesse aqui, jamais me permitiria ter cedido à vertigem do hábito. Pensei também que seria apropriado ir com as unhas bem tingidas, antes que me tomassem como suspeita.

Vanessa Teodoro Trajano, apesar de nascida na Terra do Sol do Equador e residente no coração do Brasil, é pertencente a todos e a lugar nenhum ao mesmo tempo. Cidadã do mundo, atravessa a vida melhorando os textos alheios e contando as próprias histórias – seja na literatura, com Mulheres Incomuns (2012), Poemas Proibidos (2014), Doralice (2015), Ela não é mulher pra casar (2019 – Finalista do Prêmio Guarulhos de São Paulo na categoria Livro do Ano) e Supermulher e outras performances poéticas (2020 – Ebook pandêmico), seja no cinema, com o Curta-Doc A DESunião faz a FORCA! (2022). 3 noites com Maria Eugênia é o seu novo deslocar-se do mundo.