FEITO A IMAGEM E SEMELHANÇA

AIRTON SOUZA

feito a imagem e semelhança
dos que têm fome e presságios
ícaro cartografa na palma das mãos
os pronomes que semeiam as palavras:
terra e amor

sozinho faz atravessar, entre os próprios dentes,
o sentido uníssono das paisagens
que agora acreditam mais na infância
do que na silhueta perpendicular de deus

ícaro esquece as orações antes da guerra
porque sabe que os homens, ainda atávicos,
preferem pincelar ausências e tragédias
ou bordar no peito o peso dos ossos
quando estão distantes da tarefa de anunciar horizontes

tingido pela nudez das vozes
de mulheres, crianças e anciãs assassinadas
o corpo de ícaro sonha todos os dias
como conseguir terminar o único vocabulário
capaz de acordar as auroras
& fazer do escuro uma legenda sem desertos.

as confissões de ícaro não fabricam hemisférios
elas derramam o artifício de janelas
dentro dos olhos dos que morrem
antes de compreender a angústia dos arbustos
dos que perdem a noção das bugavílias
dos que amanhã, dentro da consumação do azul,
esquecem para sempre a retórica dos biombos
ou dos que sabem mais de abandonos e desgraças
do que de deus, ternura e estrelas

por não conseguir equilibrar uma pátria na língua
ícaro faz demorar em sua garganta
a tristeza dicionarizada pelos vaga-lumes
e isso o deixa sem saber abrir
a urgência mineral da dormência dos pássaros
o deixa caminhar longe dos pentecostes
e com a boca fedendo a hospício
as asas de ícaro repetem sem parar:
“deus não sabe imitar a efemeridade das árvores”

por vezes, ícaro tem vontade de ter um útero
só para chegar mais perto da primavera
& sem vírgula no próprio crânio,
ainda temerário, ter forças para gritar:
“nem deus, nem as mariposas estão consumadas!”

amputado pela anatomia do país
ícaro se engasga de quintais e pântanos
mas, interminável, germina outro amanhecer
onde deveria morrer os carrascos
onde deveria nascer a dimensão dos milagres
a ferrugem das sementes incendiadas de saudade
ou os estilhaços dos portos sem memória

para ícaro o último rosto da varanda
não esconde os sussurros inconsoláveis das águas
a inclinação dissipada das preces
o rubro das planícies negadas por deus
a relva abraçada de túmulos e a imaculação
o cheiro improvável e entreaberto dos suicidas
a aflição das mãos derrotadas pelas igrejas

amputado pelos ruídos das neblinas
ícaro batiza outras liturgias
na carne florescidas no rosto dos peregrinos
faz ressoar minúsculas sodomas quase vazias
nas retinas de homens que apertam gatilhos
pensando que é possível tingir o próprio filho
com ilhas e bangalôs

só ícaro sabe ampliar o sal dos séculos
na língua latifundiária dos assassinos.

ícaro sonha com casas, falésias e as últimas chuvas
porque não aprendeu a gênese da carne
há dias em que ele atravessa com dedos côncavos
a vociferação capaz de envelhecer os rios
tentando acordar as primeiras camadas das reticências
em outros perdoa os atlânticos ancorados
dentro dos corações dos mendigos
ou mesmo assim devota o sétimo dia na fome dos peixes

para enterrar uma procissão de hectares
que jamais dariam conta de multiplicar o idioma
em que a horizontalidade cândida de deus
ressuscita arquipélagos caligrafados amanhã
pela agonia das libélulas
ícaro sonha com mapas, amapolas e as primeiras obliquidades

ainda nu de retrato e contínuos holocaustos
& como se fosse preciso atravessar
todos os relevos caiados de indelicadezas
ícaro encharca as pálpebras com paredes
traz das catástrofes pronunciadas primaveras sem cheiros
para alimentar outra vegetação nas bocas das mães
que morrem sem aprender a devorar:
o lado mais obscuro de deus
a parte menos azul do assombro
os nomes soerguidos por deuteronômio
as antigas lembranças molhadas pelos cabelos

tanto a mãe que morre quanto ícaro
sonham com o abstrato amor esquecido
pela amplidão muda deixada pelo sudário de cristo.


Airton Souza [Marabá/PA, 1982] é poeta, professor e pesquisador. É doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, pela Universidade Federal do Pará e Mestre em Letras, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Já publicou 43 livros e já participou e mais de 100 antologias.