UM ESPÍRITO PESADO DEMAIS

THEO G. ALVES

Dona Izabel costumava rezar gêmeos de uma vez só, porque gêmeos são dois mas são um apenas, ela dizia. O espírito é tão grande e pesado que um corpo só não dá conta e por isso divide para dois, mas no fim é uma coisa só mesmo, foi como ela explicou à avó e aos meninos, que pareciam concordar com a benzedeira.

Zacarias e Zuquinha sempre pareceram o mesmo, tanto que era comum entre os meninos da rua perguntarem você é você ou é seu irmão? E todos riam diante da confusão em que um deles parecia se encontrar quando raramente estava sozinho. Em quase todos os lugares estavam juntos e talvez nem os pais soubessem dizer com certeza quem era um ou o outro.

Fisicamente nem eram assim tão parecidos, mas se comportavam de maneira tão idêntica que a aparência era o que menos contava. Não havia quem pudesse garantir que o cabelo mais claro de um continuasse a ser dele ou passasse a ser do outro no dia seguinte, ou a mancha rosada na testa que era mais intensa em um que no outro. Por certo, quando falavam, quando riam e as decisões que tomavam eram sempre idênticas.

Zacarias havia nascido primeiro e era pouco menos de vinte minutos mais velho que Zuquinha. Nunca fizeram conta disso, no entanto, e eram capazes de jurar que haviam nascido juntos, rigorosamente ao mesmo tempo, para o calvário de sua mãe. Não era, de fato, como se Zuquinha tivesse brotado a partir do irmão ou vice-versa. Tinham existido juntos, sido fecundados juntos, como um big bang dobrado de dimensões muito pequenas ao ponto de revelá-los para a vida ali no Barreiro das Almas, que era um universo do tamanho de um riacho pequeno.

Na escola, tinham sempre as mesmas notas e davam sempre as mesmas respostas nas provas. Até quando o diretor obrigou que fizessem as avaliações em salas separadas, responderam tudo exatamente igual, inclusive as respostas erradas. Nunca aceitavam jogar em times diferentes nas partidas de futebol e, quando tentavam separá-los, um sempre tomava a frente do outro para dizer que ou jogam os dois ou nenhum e já começavam a dar as costas para o campo de terra batida.

Nenhum dos outros meninos saberia dizer qual dos gêmeos havia sentenciado o destino dos times, mas corriam a dizer que tudo bem, tudo bem, podem jogar juntos.

Dona Izabel devia ter razão quando dizia que o espírito era pesado demais para um só e por isso tinham vindo dois iguais. É provável que dividindo o espírito para dois faltasse um pouquinho em cada um também. Eram a companhia um do outro. Havia muito pouco espaço para que alguém os ladeasse e não era comum vê-los partilhando atividades como as armadilhas que os outros meninos aprontavam para Dinho ou os ataques de pedras que armavam contra o muro da casa da velha Kolia, que vivia entre gatos, restos de comida e mofo de livros.

Não que houvesse nessa abstenção um princípio moral ou algo de compaixão por Dinho, que nem sabia levantar as mãos para se defender, ou por Kolia, a quem a solidão e o excesso dos livros fizeram doida. A ausência de Zacarias e Zuquinha nessas atividades era muito mais fruto do desinteresse pela companhia dos outros que algum engenho ético.

Quando passavam pela calçada em frente à casa de Dona Kolia, limitavam-se a pendurarem-se na janela para olhar entre as frestas. Viam o de sempre, a velha sentada na rede, os livros no chão e os pratos cheios de resto de comida sendo lambidos pelos gatos bem eriçados. Os dedos seguiam trançados e as pernas balançavam a rede aos pouquinhos, que era a mínima evidência capaz de distinguir se estava viva ou morta.

O cheiro de mofo, urina e comida podre vinha de repente por baixo da janela e acertava os gêmeos na cara, como se tivessem uma apenas, e eles faziam a mesma careta, se soltavam da janela, corriam gargalhando e empurrando um ao outro. A solidão de Dona Kolia continuava se balançando na rede, entre gatos e livros que talvez tenha lido. Era tão nítida e palpável a solidão da velha que podia ser vista pelas frestas da janela ainda que sob a pouca luz entrando magramente pela sala.

Vez por outra os gêmeos pulavam o muro de Dona Kolia para roubar as goiabas que ficavam maduras. Ainda que não refletissem sobre isso, não se sentiam exatamente ladrões porque sabiam que as mãos crispadas da velha não eram capazes de tirar as goiabas da árvore. Entravam em silêncio, pé ante pé, e com uma vara que escondiam no próprio quintal da sombra de mulher que se balançava na rede, punham-se a derrubar goiabas já amareladas de prontas.

Era algo improvável que uma goiabeira frutificasse tanto apesar do descuido de Kolia, que nunca havia regado nem protegido a árvore das lagartas. Dona Kolia só se balançava na rede com as mãos crispadas entre os gatos que arrodeavam os pratos com restos de comida e mais nada. Mas a goiabeira seguia pendida de frutos graúdos e muito doces.

Quando os sacos que os meninos levavam estavam gordos de tantas goiabas, fingiam ter ouvido o barulho da velha se levantando, escondiam a vara e saltavam para fora do quintal com o peso da pilhagem. Avisavam aos outros meninos que ainda tinha goiaba demais lá, vão lá, vão lá que o pé está carregado. E os meninos se agitavam para o roubo, mesmo que sob certo medo dos possíveis feitiços que a velha pudesse jogar sobre eles, que a avó já lhes tinha dito que Dona Kolia é uma velha muito poderosa e vocês abram do olho que se ela pega vocês faz virarem gatos iguais aos que estão lá ao redor dela. Os meninos não acreditavam nem desacreditavam totalmente nos poderes de Dona Kolia, a não ser por Adailton, que era descrente demais dessas histórias inventadas.

Zacarias e Zuquinha seguiam para casa com as sacolas transbordando de goiabas doces e se desviavam até o Açude do Governo para enfiar os pés na lama e encher a barriga antes de terminarem o caminho.

Quando chegavam, as duas sacolas eram uma agora, como eles. Entregavam-na à mãe antes que o pai lhes tomasse as goiabas e os pusesse de castigo, mesmo sem devolver as frutas a Dona Kolia ou a eles, cujo roubo dava-lhes o direito de posse segundo as regras morais que criaram sem jamais terem pensado nisso.

Os gêmeos tinham sempre a impressão de que cabia ao pai tomar-lhes tudo. Tomava-lhes as goiabas que haviam roubado com seu próprio esforço, tomava-lhes o troco miúdo que a avó lhes dava ao fim dos almoços de sábado, tomava-lhes até o que os meninos achavam na rua ou no lixo da oficina e que levavam para casa apenas pelo brilho, como rolamentos, cacos de baquelite e de espelhos, vasos bonitos quebrados no beiço e qualquer outra coisa que pudesse parecer deles.

A mãe também era algo que Zacarias e Zuquinha acreditavam ter-lhes sido tomado pelo pai. Antes de ser mãe dos meninos, ela era a mulher do pai, e os gêmeos eram sempre preteridos em qualquer ordem. O pai tomava café primeiro, e a primeira colher de cuscuz ia sempre para o prato dele, assim como o primeiro e o último copo de suco feito com as goiabas que tinham sido roubadas com o próprio suor e engenho dos irmãos. Deixem esse suco aí, meninos, que é de seu pai.

Tomava-lhes tudo e lhes oferecia muito pouco em troca. Um teto, os banhos, a comida que não cabia em seu prato e umas poucas roupas, que ninguém aqui tem para viver luxando, não, como ele usava, dizia. Tinha dado nomes aos dois também, ainda que tivesse roubado o de Zuquinha, a quem chamava unicamente pelo apelido, e essa era uma das poucas coisas que não lhes permitia serem iguais em mais. Um tinha nome de pia, o outro tinha resto de nome.

A usura em que o pai os matinha era constante, mas Dona Izabel não podia curar a doença do pai benzendo os filhos. Ela os sentava em um par de bancos juntos e os rezava ao mesmo tempo porque os dois são um só, mulher, espie. A avó queria rir, mas se continha, também porque acreditava na mesma coisa. Dona Izabel punha-se a benzer e o ramo desenhava cruzes da testa ao diafragma dos gêmeos, bocejava pequenas flores roxas de metal entre palavras que os meninos tentavam adivinhar pela curiosidade. Os galhos de arruda secavam rapidamente, ficavam acinzentados, murchos e ela os substituía por outros. Bocejava ainda mais, falava ainda mais rápido, mais entredentes, e o cheiro metálico que saía de sua boca ficava mais denso todas as vezes em que parava para tomar fôlego.

Terminava de rezá-los exausta e dizia para a avó leve esses meninos, mulher, pelo amor de Deus, leve essa alma daqui.

A avó saltava da cadeira e tangia os meninos para fora da sala escura dizendo vamos, vamos, vamos vocês dois que a velha está morre não morre. Zacarias e Zuquinha apertavam o passo para fora sem se olharem e, quando o primeiro pé encontrava a calçada, punham-se a correr para casa sentindo alguma culpa, como se tivessem atentado contra a vida de Dona Izabel.

Eles não se lembrariam disso muito mais tarde quando estivessem homens feitos, trabalhando na fábrica de algodão, o serviço pesado dobrando a coluna dos dois que arquejavam no mesmo ritmo depois de cansados, indo embora com algum dinheiro no bolso. A lata em que amealhavam os trocados que o trabalho rendia era a mesma para ambos, bem escondida em um buraco que fizeram no chão, embaixo da cama de Zuqinha, escondida sob as peças metálicas que ainda encontravam no lixo da oficina, os restos de baquelite e cacos de espelho, para que o pai não viesse a encontrá-la. Sabiam que a regra seguia a mesma dos tempos de meninos, e como o pai sempre repetisse, enquanto vocês estiverem nesta casa o que estiver aqui é meu, não tem conversinha.

Ainda que ajudassem a manter a casa, o suco, o prato, a mãe e qualquer outra coisa seguiam pertencendo ao pai. Até a lata com o dinheiro que guardaram por dois anos e que serviria para irem embora do Barreiro das Almas e se livrarem da mão pesada do pai que lhes tomava tudo também foi usurpada. Quando a encontrou, o pai ficou furioso por todo aquele dinheiro guardado de tempos, escondido sob o chão da casa que é minha, do quarto que é meu, da cama que é minha e vocês que são meus também, gritava.

Os vizinhos ouviam o vozerio e aguçavam os ouvidos tentando descobrir sobre a palavra dinheiro que soava sempre mais alta e clara que as outras.

Dona Izabel não havia morrido depois de benzer os meninos, que juravam tê-la quase matado. No entanto, aquele momento poderia ser considerado uma primeira experiência a ser melhorada, mais efetiva e calculada, esperando o pai adormecer para que um dos gêmeos arrastasse o caco de espelho de um lado a outro da garganta do velho enquanto viam-no afogar-se de dentro para fora no próprio sangue. A mãe horrorizada à porta do quarto sem a mínima certeza de qual dos filhos havia matado o pai, por isso dizia com pouca voz o que vocês fizeram, meninos, o que vocês fizeram com seu pai?

A mãe irrompeu a garganta da noite com um grito e os gêmeos entenderam que era hora de porem-se a correr. Os dois tinham sangue nas mãos e não é possível dizer qual deles soltou o caco de espelho em meio à fuga. Pegaram a lata de dinheiro que era de novo deles, agora sem pai que a reclamasse, e correram em direção à mina para se esconderem no mato. Não tinham plano algum, senão pequenos objetivos, como sobreviver, fugir e fazer a vida em outro lugar que isto aqui não é terra para ninguém, aqui é só sofrimento, eles diziam um ao outro jurando a si mesmos que tinham feito o que era necessário.

Quatro dias depois a polícia os encontrou muito abatidos, com fome e sede, os corpos marcados pelos espinhos de cardeiros, fedendo e agarrados um ao outro como se fossem um só, o espírito que compartilhavam por ser pesado demais para que apenas um carregasse.

Só uma vez a mãe foi vê-los na delegacia porque precisava dizer a eles que o inferno estava esperando por vocês, que não há dinheiro nem nada no mundo que justifique matar um pai, um homem bom que nem o pai de vocês era, que só era duro para ensinar a vocês que a vida não é brinquedo e vocês frios desse jeito, vocês são filhos do diabo e a culpa é minha que botei vocês pestes no mundo, que eu sabia que esse negócio de gêmeos era sinal de desgraça, que é coisa de quem tem pouco espírito para dois, que carrega a alma pesada demais para um, desgraçados.

Zacarias e Zuquinha foram encaminhados para cadeias diferentes, separados pela primeira vez, e desde esse momento começaram a morrer de fato.

Não tinham contato nem notícias um do outro. Ninguém os visitava na cadeia e a grande falta que sentiam era de poder saber como estava o irmão, que das outras pessoas não chegavam a dar fé nem sentiam saudades da mãe.

Zacarias nunca foi avisado da morte do irmão em pleno mês de junho que é tempo da padroeira. Ninguém lhe contou que Zuquinha tinha sido morto por algum companheiro de cela enquanto dormia, esfaqueado no pescoço, parecido com o pai. Não conseguiu gritar por ajuda e os outros presos não se envolveram e deram as costas para não o ver morrer como um bode sangrando sem conseguir balir. Demorou muito para conseguirem limpar a cela depois, mas nem queimaram o colchão de Zuquinha. Botaram para quarar ao sol enquanto outro preso não chegava para precisar dele. O cheiro ferruginoso de sangue demorou a sair e o chão continuou manchado, ainda que não fosse a primeira nem a última vez que o tingissem daquela cor.

Verdade que Zacarias não foi avisado da morte do irmão, mas começou a morrer aos poucos por conta própria. No mesmo mês de junho começou a definhar e a se encostar nos cantos de parede, sem querer comer nem sair da cela. Passava os dias variando entre estar deitado e sentado agarrando os joelhos, com a cara escondida, segurando o choro pelos cantos porque é muito perigoso para um homem chorar na cadeia. Ficava um pouco menor a cada dia, as costas doíam muito e mal conseguia ficar de pé. Sabia que era o espírito pesado demais para um só, sabia que alguma coisa de ruim havia acontecido ao irmão, com quem já não podia mais partilhar o peso de tanto espírito.

Ainda não havia começado setembro quando um dos que dividiam a cela com Zacarias gritou para um guarda venha ver que um aqui passou. Os homens fardados verificaram o corpo de Zacarias e deram certeza de sua morte, amofinado no canto da cela. Quando o tiraram de lá, estava tão pequeno que parecia um menino preso ali por engano. Apesar do tamanho, pesava muito e foi preciso chamar um terceiro guarda para que conseguissem tirar o gêmeo Zacarias de lá.

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Um espírito pesado demais se constitui como trecho do romance Barreiro das Almas.

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas mora em Santa Cruz, no interior do Rio Grande do Norte. Foi premiado em concursos nacionais e locais tanto por sua prosa quanto poesia. Publicou, entre outros, os livros A Máquina de Avessar os Dias, Doce Azedo Amaro, Caderno de Anotações Breves e Memórias Tardias, Por que Não Enterramos o Cão? e Barreiro das Almas. Theo continua escrevendo, entre silêncio e barulho, por acreditar na palavra como um caminho possível e necessário.

À LUZ DE VELA

LÍLIAN ALMEIDA

Faltou luz. A energia caiu depois da ventania. Tinha muito trabalho pela frente. A cabeça ainda elétrica. Sem luz, restava pouco a fazer. Aguardar. Dias antes, no mercadinho, olhei para as velas, ao lado das caixas de fósforo que peguei, e pensei que não precisaria delas. Sabedoria não falha no tempo das coisas. O momento das velas chegou e não as tinha. Certo assim!

A janela aberta para alguma claridade da noite de lua, coberta de nuvens, deixava o quarto um pouco menos escuro. A bateria do celular em 15% seria preservada para uma real necessidade. Os pratos na pia, as roupas para guardar em cima da cama, o feijão a catar, tudo teria que aguardar a luz. Fazer o quê? Deitei. Cogitei sobre o tempo necessário para restabelecer o serviço de energia elétrica. Quando voltasse teria isso e aquilo para fazer. Agora, nada não. Lembrei que poderia respirar. Seria uma maneira de relaxar, descansar para quando pudesse voltar ao trabalho.

A vizinha certamente divisou pela janela o breu do lado de cá e gritou se precisava de vela. Aceitei. Agora alguma luz dava espaço para guardar as roupas, tomar banho. Os pratos e o feijão ficariam para quando tivesse mais luz para discernir o bom do ruim, o feito do mal feito.

Luz de vela pede história. Era assim desde a infância no subúrbio precário em que cresci, nas muitas vezes em que faltava energia elétrica. Recordei que ficávamos em casa sob a luz tremeluzente da chama das velas, contando histórias de lobisomem, assombração, ou desenhando, com as mãos, sombras na parede. Às vezes a chama provocava um vulto e era o suficiente para alguém gritar e assustar todo mundo.

Agora era só eu no quarto, não tinha os primos, a avó ou os pais para contar causos. Olhei para o livro, na mesa de cabeceira, que avançava um capítulo por dia antes de dormir. Na adolescência, a mãe reclamava quando, nessas noites de escuro, eu levava a vela para cima da mesa, trazia um livro pra perto e lia as páginas amareladas pela chama da vela por horas a fio. Estraga as vistas, dizia. E ainda tinha o risco de botar fogo no livro, na mesa e, na dramaticidade da mãe, na casa inteira. Mesmo com o temor agravado pelas sentenças maternas, eu não deixava de ler à luz de velas.

Tomei o livro como fazia antes, posicionei a vela um pouco mais alto, acima de mim, para clarear bem. Com a experiência da adolescência aprendi que colocar a vela mais alta gera maior expansão da luminosidade. É preciso também sentar próximo, pois à medida que a luz se espraia perde força, brilho. Carecia de óculos para percorrer as letras. Demorou um pouco para as retinas se adaptarem, mas consegui dar ritmo e fluxo à leitura.

Desvendava a fuga de uma das personagens e a orfandade de outra, a irmã, que se agarraria à terra como a uma mãe. A terra enchia de significado a vida naqueles sertões. Coisa que a escola local ignorava, cheia de palavras estranhas, homens e histórias longínquas, alheias. Era o coração da terra que a irmã escutava quando deitava para cheirar a umidade do chão depois da chuva. Não podia sentir o mesmo com os cadernos. As horas iam no ritmo da leitura e das pausas que eu fazia para preencher as cenas com meu próprio repertório de vivências. Esqueci da vela. Lia como se estivesse junto com as irmãs separadas, solidárias à solidão de cada uma delas. Toda a ambiência era propícia à confluência entre as nossas vidas.

Agora chovia. Prestei atenção ao barulho da chuva no telhado e agucei o olfato para o cheiro da terra. Um clarão piscou, depois se manteve acendido. Lá fora, gritos alegres. Os eletrodomésticos emitiam ruídos como se voltassem à vida, a funcionar. O quarto agora estava iluminado pela lâmpada. A vela sobrava. Alguma magia desfez-se. Eu olhava a placidez da chama, adivinhava o cheiro do fim. Soprei. Um fio de fumaça dançou no contraste com a janela aberta. Sentada, inalei o cheiro de parafina como se mantivesse iluminada, dentro de mim, a infância.

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Lílian Almeida é professora adjunta na Universidade do Estado da Bahia. Tem publicações em portais literários, revistas digitais e antologias. Participa de eventos literários no Brasil e em outros países. Foi uma das curadoras do I Encontro de Autoras Baianas. Publicou Todas as cartas de amor (prosa, 2014) e Pulsares (poesia, 2019, Prêmio Caramurê de Literatura).

A HIPÓTESE KRÓNOS

RAIMUNDO SOARES

01

a estrada é longa, o abismo,
aves devoram o tempo,
deus está ali nos arbustos
sem sarça ardente

não espante os fantasmas,
grite e morda a paisagem,
as horas mais densas
não cabem nos olhos

e resta o mistério
deus morto na ribeira
rio, te espera o cadafalso
iluminado por estrelas.

§

02

escrever é alquimia
auscultar o corpo faminto
na noite cega
nas mãos que não sinto

e tombar exausto e perdido
no caminho sem volta
o poema como agouro sombrio
na alma que se mostra

oh, mestre do terreiro
devora essa encantaria
é o mar no sangue
no silêncio do dia.

§

03

ninguém verá a sombra tardia
sob mil janelas cegas
a flor que cresce sozinha
não espera

que a tarde chegue
e devore a sagrada eucaristia
tombe, oh noite,
essa lua de tantos mitos

é uma chaga aberta
memento mori
o tempo é uma ave cega
que me devora o corpo.


Raimundo Soares é poeta, natural de Itapecuru Mirim, interior do Maranhão, servidor público. Participou da coletânea Babaçu Lâmina (organizada pelo poeta Carvalho Júnior). Parte de sua produção poética está no blog Turista exilado, e também na Revista Germina.

DOS MISTÉRIOS IMPERATIVOS

RITA SANTANA

A fim de entendimentos,
Inundas meu corpo de orgias e rituais.
Observa a impudência das begônias
E a cordura das rosas:
A precisão imperará sobre tuas mãos,
E se fará sabedoria no tempo da brusquidão
E no levante das gentilezas.

Vigia a erupção das avencas,
E a quietude que também é adubo
Para o seu esplendor.
Nada em mim perdura na sofreguidão:
Careço de palavras e de mutismos.

Não sufocar as raízes, nem a imersão das vontades.
A vida perde-se, soterram-se os desejos.
O trato é o mesmo: observâncias
Do que em mim é interno, é terra.
Húmus onde desatino gozo,
Onde tudo é Sacralidade e impureza.
Desde que aprendi a plantar cores no quintal,
Vivo assim, desintegrada da razão.


Rita Santana nasceu em Ilhéus, Bahia, a 22 de agosto de 1969. É graduada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz. É atriz com trabalhos em teatro, cinema e televisão; escritora e professora. Em 2004, ganha o Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela. Autora dos livros de poemas Tratado das veias (2006), Alforrias (2012) e Cortesanias (2019).