INTEMPESTIVA, de GISELLE VIANNA

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

Teu passado / nada pode contra / o abraço que te aguarda”. Esses versos fazem parte de Repente, poema que abre o livro Intempestiva (São Paulo: Patuá, 2023), de Giselle Vianna. Mais que a oposição entre passado e futuro, a obra de Giselle oscila entre as marcas de agressão e a força da esperança e suas correspondências, abordando contrastes e tensões sem recair num maniqueísmo reducionista, extraindo versos líricos da aridez da existência.

Giselle Vianna nasceu em Campinas, São Paulo, em 1981. Formada em Direito e doutora em Sociologia, realiza pesquisas sobre trabalho escravo contemporâneo e, como voluntária do Instituto Uno, atua na alfabetização de crianças e adolescentes em situação de acolhimento na cidade de São Paulo. Suas obras anteriores, Pau-Rodado (2016) e Eclíptica: poemas venezianos (2019), remetem a um período de estadia e pesquisa no Estado do Mato Grosso e em Veneza, respectivamente.

E agora, a autora nos apresenta Intempestiva. Composta por poemas escritos entre 2016 e 2022, reflete as tensões e conflitos vivenciados no período mencionado, desde a situação político-social à angústia de cunho privado, e a partir desse manancial de violências e resistências emerge uma obra bem construída, em que os temas ainda que possam variar ao longo das páginas, mantêm um encadeamento que, juntamente com a dicção poética da autora, contribui para a coesão ao longo de todo o livro. Por diversas vezes, encontramos versos de poemas distintos que parecem dialogar entre si e até se complementarem num possível único poema. Como exemplo, os versos que se inscrevem na última página, acima do colofão: “no escuro da noite / que trama a paz e a guerra / uma criança chora / e alguém, em vigília, / protege a primavera”, que poderiam se relacionar aos seguintes versos: “algo / relampeja / no inverno de teus olhos” (A tempo, p.79) / “não é preciso / verter a lágrima / ou levantar a mão / num aceno / […] / meu vento, / como todo vento, / soprará” (No ar, p. 107) / “algo em mim / saberá distinguir / as ideias lavradas / das ideias daninhas” (Identificação botânica, p.13).

É nesse exercício de aproximação de opostos que se desenvolve boa parte da poética de Giselle Vianna. No entanto, além do exercício de contrastes e metáforas, sua poesia também se volta para a realidade crua e agressiva, para a necessidade de resistir, denunciar, gritar, como na sequência dos poemas Bem guardado, Covardia, Dark room, Violação e Dessalga, na qual encontramos os seguintes versos: “as almas mal se tocam / e os traumas já se roçam / como dois ossos” (Dark room, p.23); “foi percorrendo à força / minhas pernas / minhas coxas / foi me puxando com carinho / pra perto da culpa” (Violação, p.25); “não sei em que mar / vai desaguar / a minha dor cansada” (Dessalga, p.27). Em seguida, temos o poema sem título que se inicia com o verso “todo grito”, bastante significativo, pois a obra de Giselle bem se adequa a esse aspecto: uma reação em forma de poesia ante as asperezas e violências da vida, pois, afinal, “todo grito / procura um ouvido / para virar palavra” (p.29).

Adriano Lobão Aragão é autor de Destinerário (poemas e fotografias), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

AS PERSONAGENS E OS LIVROS

HERASMO BRAGA

Quem realiza leituras sabe quão transformador é o seu valor, tanto da parte de quem lê, como dos que apenas as contemplam. Mesmo quando limitada a textos meramente informativos, a leitura em algum momento provocará desconforto e um mínimo de estranheza diante da realidade. Essa percepção pode ser constatada não apenas nos indivíduos, mas também nos personagens leitores. Isso ocorre por conta das mudanças das subjetividades tanto nos sujeitos reais quanto nos ficcionais.

Reconhece-se que a ação que mais o ser humano realiza está relacionada diretamente com a interpretação. Ao se relacionar, observar, sentir, pensar, projetar, a atividade interpretativa estará não só vigente, como também acontecendo o tempo todo. Diante desse aspecto, ao atentar-se para a imprescindibilidade interpretativa do ser humano, deve-se autoquestionar acerca da qualidade dela. Dessa forma, está diretamente associada, ou seja, quanto melhor e maior for a qualidade de interpretação do sujeito, consequentemente, a vida dele acompanhará esses passos somativos. No sentido contrário, também; a precariedade de viver será a tônica. Isso ocorre pelo fato de a capacidade interpretativa estar vinculada à subjetividade dos seres. Quanto mais significativa for a interpretação, maior será a expansão das subjetividades, e, portanto, os ganhos valorativos.

O elo que une os pontos entre qualidade interpretativa, vida e subjetividades reside na expressividade dos textos literários. Aqueles dotados de maior profundidade de expressão irão promover as distensões interpretativas e ampliação de subjetividades. Essa tese pode ser demonstrável sem dificuldades nos próprios ganhos que as personagens recebem nas suas subjetividades e as transformam em meio as suas vidas ficcionais. Ao se destacar os olhos de ressaca de Capitu, importa evidenciar, como descrito pelo próprio Bentinho, o quanto ela fora uma grande leitora na infância e adolescência. Da mesma maneira, outra personagem marcante da literatura, Emma Bovary, que, ao não aceitar ter uma vida burocrática ao lado do seu marido Charles ou Carlos, a depender da tradução, desenvolve essa renúncia de ser mulher submissa, entregue apenas às questões do lar e da criação de filhos, as leituras que constantemente realizava e mesmo sendo de romances idealizados com níveis de superficialidades, despertava-lhe a sede de viver aquela intensidade de sentimentos que ele encontrava nos livros, ampliando os efeitos imaginativos. Com base nesses registros, consegue-se entender quando Leyla Perrone-Moisés, em um dos seus textos denominado “Ensino de Literatura”, enuncia entre outras coisas que: “a literatura é um instrumento de conhecimento do outro e de autoconhecimento, porque a ficção, ao mesmo tempo em que ilumina a realidade, mostra que outras realidades são possíveis”. Essas são algumas das chaves das potencialidades e riquezas na ação efetiva de conhecer o outro, ao tempo que se autoconhece, diante de uma realidade mediada pelo texto ficcional, ilumina não só uma dada realidade, mas diversas outras possíveis como deveras percebeu Capitu ao ser tão enigmática para Bentinho, e Emma tão ousada no enfrentamento de toda uma sociedade moralista de plena limitação dos desejos femininos.

Outro personagem que goza de formação cultural diferenciada e, a partir da leitura de uma obra, disponibiliza-se a ter o que antes seria apenas ideias e agora sente a coragem de exercer uma vida plena hedonista é Dorian Gray, personagem do romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray. Diante da história lida em que admira o personagem: “O herói, o magnífico jovem parisiense em quem os temperamentos romântico e científico se mesclavam de modo estranho, tornou-se para ele uma espécie de protótipo de si mesmo. E, de fato, o livro todo parecia conter a história de sua própria vida, escrita antes que ele a tivesse vivido”. Destarte, Dorian tomado pelo impulso motivador, transforma-se radicalmente ao ponto de também ter todas as vivências possíveis, como de fato, efetivou. E como descreve o narrador: “Durante anos Dorian Gray não conseguiu se livrar da influência do livro. Ou talvez fosse mais apropriado dizer que ele nunca tentou se livrar dela”. Esse despertar e transformação de vida de Dorian Gray demonstra a vitalidade de como a leitura incide sobre as subjetividades dos sujeitos, muitas vezes, quando se é permitido, de maneira arrebatadora, proporcionando novas formas de vivências antes experenciadas nas leituras, assimiladas nas subjetividades e depois por meio das ações reconfiguradas, como expressa Paul Ricoeur em sua abordagem sobre mimeses III, que elevam a novas formas de vida antes restritas nas leituras agora investidas em suas vidas. Sejam das personagens, sejam dos seres reais.

Essa incursão inquietante, quando em meio às narrativas se deparam com narradores ficcionais, lançarem-se em despertar promovido por personagens, significa muito mais do que apenas uma revelação da complexidade e amplitude que os textos ficcionais provocam. Observa-se nas passagens de No Caminho de Shaww, de Marcel Proust, a seguinte menção em torno dessas assertivas: “Depois desta crença central que, durante a leitura, executava movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade, vinham as emoções que me dava a ação na qual tomava parte, pois as tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Eram os acontecimentos que ocorriam no livro que estava lendo; é verdade que as personagens a quem interessavam não eram ‘reais’, como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou a desgraça de uma personagem real só ocorrem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou dessa desgraça; a engenhosidade do primeiro romancista consistiu em compreender que, no aparelho das nossas emoções, sendo a imagem o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, em grande parte só o percebemos através dos sentidos, isto é, permanece opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não consegue erguer”. Esse olhar diferenciado a partir do olhar da personagem que sofre modificações e vivencia experiências por meio de outras personagens das histórias que ele lê e por meio da sua elevação, também, os sujeitos leitores que se encontram em orientação desse olhar proporcionalmente alçam suas performances perceptivas. Tensões emocionais sentidas nas leituras, muito mais do que em inúmeras vidas inteiras, são modificadoras do sujeito leitor, personagem da intriga e também do sujeito leitor real. Aguçam-se as sensações e se distanciam das limitações e superficialidades da vida comum, preenchendo o que é desprovido de vida, recheando de intensidades formativas que elencam o espírito.

Interessante que essa dimensionalidade de ampliação do espírito pelo exercício do desenvolvimento formativo, acontece, conforme Goethe em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, porque lançar-se no mundo ficcional, como bem expressa até então conhecido personagem eclesiástico em diálogo com Wilhelm, “é o melhor meio de arrancar os homens de si mesmos e trazê-los de volta por um desvio”. Então, é sair do mundo ordinário e imergir em outro das personagens que se encontram diante dos olhos e lhes tocam o espírito. Em momento posterior, Wilhelm Meister, ao refletir sobre o ganho significativo dessa jornada constitutiva, expressa-se ao amigo e agora cunhado Werner, em uma carta acerca dessa constante busca formativa por meio das experiências, principalmente as despertadas e vivenciadas ficcionalmente como nas peças teatrais e textos poéticos aos quais ele se dedica inteiramente nas leituras: “Para dizer-te em uma palavra: formar-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância. Ainda conservo essa disposição, com a diferença de que agora vislumbro com mais clareza os meios que me permitirão realizá-los. Tenho visto mais mundo que tu crês, e dele me tenho servido melhor que tu imaginas”. Destarte, nas confluências dos olhares entre leitor e personagens, personagens leitores acerca de seus personagens, são elaboradas e reelaboradas formas e concepções transformadoras tanto dos personagens em seus enredos, quanto dos sujeitos leitores, e ambos se desenvolvem e se diferenciam nas suas subjetividades no mundo da coexistência entre ficção e realidade.

Como bem enuncia Antonio Candido em sua obra Textos de Intervenção, que a literatura “exprime o homem e depois atua na própria formação do homem”. Assim, diante dessas circularidades formativas entre leitores e personagens, percebe-se a clareza da afirmação de Candido.

Herasmo Braga é professor e ensaísta