ADRIANO LOBÃO ARAGÃO
“Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou”. (p.13) Com essas frases, Socorro Acioli inicia seu romance Oração para desaparecer (Companhia das Letras, 2023) de forma bastante pungente e instigante. As duas primeiras páginas são arrebatadoras e, de imediato, as incluí na minha lista de aberturas de romance que mais me agradaram. Em seguida, pela própria natureza da história a ser contada, a narrativa vai assumindo um caráter mais suave e reflexivo, acompanhando a gradativa maturação necessária à protagonista para recuperar sua força física e, principalmente, sua memória, para que possa redescobrir seu lugar no mundo.
Numa observação superficial, pode-se até supor que, em Oração para desaparecer, a escritora tenha mantido uma pegada um tanto parecida com seu livro anterior, A cabeça do santo. Novamente, uma narrativa pontuada pelo fantástico e desenvolvida a partir de um peculiar acontecimento real ocorrido no interior do Ceará, sua terra natal. Em A cabeça do santo, temos como ponto de partida a escultura de Santo Antônio, com sua gigantesca cabeça separada do corpo, na cidade de Caridade, que, na obra de Socorro, transformou-se na fictícia e abandonada cidade de Candeia. Em Oração para desaparecer, temos como mote inicial a história verídica de uma igreja localizada em Almofala, distrito do município cearense de Itarema, que permaneceu soterrada por muitos anos e depois ressurgiu após o movimento das dunas que a haviam encoberto. No entanto, ainda que ambas as narrativas tenham surgido enlinhavando realidade, fantasia e ficção, são construções estéticas bem distintas em relação ao ritmo e à arquitetura narrativa. As cenas ágeis de A cabeça do santo, que em alguns trechos chegam a lembrar romances de aventura, às vezes contrastam com o tom mais reflexivo e intimista da maioria dos capítulos de Oração para desaparecer.
Socorro Acioli constrói seu romance a partir da história da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que foi soterrada pelas dunas e assim permaneceu, até ressurgir quase cinco décadas depois. De autoria desconhecida, a imagem que consta na parte interna da capa é justamente uma antiga fotografia da fachada da igreja. “Vieram para rezar a última missa, pedir a Deus que evitasse a destruição pela areia e levar as imagens. Há uma foto desse dia. Areia pela metade, as pessoas na porta, marcando o fechamento oficial.” (p.148)
Há uma crônica intitulada Areia e vento, de Carlos Drummond de Andrade, publicada em 1946, sobre a inusitada história da igreja de Almofala. Diversos elementos comentados por Drumond também estão presentes na obra de Acioli. Em depoimento concedido ao Diário do Nordeste, Socorro menciona a crônica de Drummond e sua influência no processo criativo de Oração para desaparecer. “Ele diz que no dia em que o padre Antônio Tomás foi lá tirar as imagens, uma prostituta da cidade, chamada Joana Camelo, jogou um tamanco na cabeça do sacerdote para recuperar a imagem de Nossa Senhora – que, no entendimento dela, era dos Tremembés. Ali eu tinha a personagem. Então consegui pensar na história.”
A igreja começou a ser soterrada em 1897. No ano seguinte, foi feita a retirada das imagens e peças de culto, mencionadas na crônica. Há também menção a um pacto de paz não-cumprido com os Tremembés. Além disso, a própria população de Almofala também foi se retirando, aumentando ainda mais a paisagem de abandono, até que, 45 anos depois, o que restava da estrutura de alvenaria da igreja fosse desenterrada pela ação da natureza, sendo posteriormente restaurada.
Além da Almofala no Ceará, há também outra em Portugal e mais outras pelo mundo. E através do fantástico, essas diversas Almofalas podem se entrelaçar por meio da jornada de seus ressurrectos, como são chamados no livro os que ressurgem da terra, como que renascidos da morte, incluindo a protagonista, que ressurge da terra, em Portugal, muitos anos depois de seu desaparecimento no Brasil, despida, sem cabelos, sem memória e ferida. “Eu estava nua, com medo e morrendo de ódio daquela mulher me chamando de rapariga. Um sopro gelado no rosto esfriou as gotas na minha pele e parecia congelar. Ainda não enxergava bem, não ouvia com clareza, achava estranhas aquelas vozes, escutava tudo sem entender nada, delirava sobre morrer.” (p.14)
Talvez um dos maiores desafios de Oração para desaparecer tenha sido construir uma narrativa com diversos capítulos baseados quase que exclusivamente em diálogos, e é dessa forma que vamos conhecendo a vida pregressa da protagonista, Cida, que ressurge em outro continente, onde busca agora reconstruir sua vida. O uso contínuo desses diálogos se coaduna bastante com essa busca, na qual se tenta resgatar o passado através da linguagem, da verbalização. E entre esses fragmentos de passado e presente, encontramos os enlaces de Cida e Jorge, e de Joana e Miguel. Numa correlação de magia, ancestralidade e pertencimento, o livro de Acioli também é uma celebração do amor.
Penso que a autora poderia ter explorado mais a capacidade de clarividência da protagonista, sua capacidade de ver e ouvir pessoas já falecidas. Muitos desdobramentos disso poderiam ter sido explorados. Assim como alguns vaticínios em relação aos ressurrectos, incluindo a afirmação de que Cida seria a última e a primeira mulher. Mas os mistérios e as perguntas sem respostas também fazer parte da narrativa.
Curiosamente, é mencionado que a oração para desaparecer de fato existe, entre os Tremembés, mas não é a que foi publicada no livro de Socorro Acioli, este que, pela competência de sua escrita, não há de desaparecer.
Referências
ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
_________. Oração para desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
BARBOSA, Diego. “Oração para desaparecer”: Novo livro de Socorro Acioli é carta de amor à Almofala, Ceará e Portugal. In Diário do Nordeste, 09 de dezembro de 2023. Disponível em https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/oracao-para-desaparecer-novo-livro-de-socorro-acioli-e-carta-de-amor-a-almofala-ceara-e-portugal-1.3453544. Acesso em 25 de maio de 24.