2 poemas de SAMUEL MARINHO

OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

escrevo no meu caderno
só pra tatear a página ao lado
o destino de todo moderno
é ser ultra
passado

HIERÓGLIFOS DO FUTURO

A forma das cidades muda mais rápido,
bem mais, que um coração mortal
Baudelaire, “O Cisne”

eis aqui
gravado em alguma parte
a primeira metade da arte
o transitório
o contingente
o ilusório
a efêmera
ultramodernidade
(o que para alguns seria
mero objeto de descarte)

a outra metade
a meta da arte
o imutável
o absoluto
o infindável
a glória
a encantar-te
não caberia sequer
no segundo encarte

é desde a antiguidade
uma questão
de vida ou morte

luta corporal incessante
de reter o poético no histórico
de extrair o perene do instante

o que os antigos modernos
chamariam de eternidade

Samuel Marinho (São Luís/MA, 1979) é poeta, autor dos livros Pequenos poemas sobre
grandes amores (2002), Poemas in outdoors (2018), Poemas de última geração
(2019, finalista do Prêmio Jabuti de 2020), Fotografias para perfis fakes (2021) e
Antiquário Moderno (2023). Os poemas selecionados são do livro Antiquário Moderno (Penalux, 2023).

2 poemas de HERMES COÊLHO

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não houve resgate quando fui violado
as escaras da alma não pude curar
deixei-me deitar no campo de sonhos
refugiei-me neles sequei o pranto
cipó que usei para me salvar
a cada quimera desfeita eu descia um pouco
rumo à floresta densa pavores turvos
e descobri um novo mundo
no meio da fauna e flora multicolor
vivi amores calei rumores me permiti
dancei com indígenas nus na aldeia
fiz amor com botos sob a lua cheia
transformei minha dor em frenesi

a seca da cidade é meu lençol
envolve a pele em ondas
cicatriza as feridas da labuta
e dos esforços ocos dos dias
aceito o açoite do cerrado
deixo meu corpo marcado
alma vagando vazia

Hermes Coêlho nasceu em Teresina, Piauí, em 1977. Reporter e editor da TV Senado, em Brasília. Autor de Nu (poemas, 2002) e Violado (2023, poemas). Os poemas aqui publicados fazem parte do livro Violado (Editora Patuá).

MAU PRESSÁGIO

VANESSA TEODORO TRAJANO

Manoela era uma daquelas jovens mulheres cuja tristeza funcionava como uma espécie de adereço, capaz de sorver a atenção alheia feito entidade ou qualquer figura que o valha. Chegava a ser alucinógena.

Para além desse detalhe, ela tinha – talvez seja impossível nominar com fidelidade – um sestro ou mania de escandalizar-se sempre que via alguém descascar o esmalte com as unhas. Um dia, acertou-me uma palmada ao ver que me dava a esse prazer, e perdi a coragem de confrontá-la, pois a bonita se pôs a choramingar logo em seguida – aí eu quem derreti vendo-a em tal estado. Ela se liquefazia e ainda assim permanecia intacta.

Devia haver algum motivo especial, porém evitei descobrir – vai que desencantava? Às vezes, o melhor remédio para o amor é desconhecer.

E ela era tão afeita à sua vazão submersa, que eu só quis encostar na sombra e usufruir, sem fazer alarido. Nem tudo era ruim. Estávamos entregues, desde os últimos meses até sabe-se lá quando.

Por isso, propus somarmos as dívidas e a rotina e partimos para um modesto apartamento pertinho da praia. Durante a mudança, perdemos coisas e quebramos outras, no entanto nada reteve mais a minha atenção do que aquele recorte de jornal, cuidadosamente enfiado na fundura de uma caixinha de lembranças, as quais nunca compartilhou comigo, fosse por egoísmo ou individualismo cruel; nele o seu rosto atravessava o choque que havia sido a perda da mãe, num acidente de ônibus. Dele foi sobrevivente, a contragosto, dado os olhinhos apartados da alma. No texto, uma pequena entrevista com o milagre da vez: o que fez o motorista perder o controle? Manoela não sabia: descascava as unhas no exato momento da tragédia.

Tive o cuidado de recolocar o artefato em seu devido lugar, e se ela se escafedesse se soubesse que eu sabia? Se eu mesma agora quisesse sumir? Antes a penumbra a qual estava habituada, o amor é insustentável na ausência de um segredo.

A vida foi passando e tentei boicotá-la, amor, as suas unhas precisam de um retoque, e me metia a descamá-las, embora levasse um tabefe, como tinha a audácia de desobedecê-la em seu trauma inexplicável-agora-compreensível? Municiada pelas minhas investigações, busquei arrancar dela o porquê de tamanha reatividade. Aquela mulher se desmontou inteira, então me vi obrigada a me conformar com mais uma desculpa mal contada e ficamos “de bem”.

A saída para a teima sem fim era cultivar um pequeno ato de rebeldia conjugal na sua ausência. Acontece é que, numa dessas, depois de arrancar com perfeição a tintura, bateram à minha porta dois policiais com certo ar de consternação.

Longe de desconfiar de imediato a desgraça que me traziam, perguntei o que queriam, e me disseram, sem muito rodeio, a Manoela foi atropelada a algumas quadras de casa. É óbvio que a minha intenção primeira foi saber para qual hospital levaram-na, coitada, devia estar precisando de mim, e eles se entreolharam, dessa vez hesitantes e talvez sensíveis demais para a farda: ela está morta, senhora. Lamento.

Arregalei os olhos e, depois de alguns instantes que não saberei mensurar, avistei a cabeça dos dedos completamente limpos. Lembrei de perguntar: se matou ou morreu?

É certo que estranharam a questão, por que a colocava à mesa numa hora daquelas, em que eu deveria, como boa esposa, desmaiar e estrangular as pálpebras, mas, de repente, a iminência de um presságio pareceu-me mais urgente – eu teria o resto da vida para chorar a morte dela.

Não sabemos ainda, responderam. Nos acompanhe, por favor.

Vou tomar uma água primeiro. Um momento.

Eles me deram o tempo necessário, aprovei a conduta. Pelo menos não eram uns brutamontes. Daí pensei que, se ela estivesse aqui, jamais me permitiria ter cedido à vertigem do hábito. Pensei também que seria apropriado ir com as unhas bem tingidas, antes que me tomassem como suspeita.

Vanessa Teodoro Trajano, apesar de nascida na Terra do Sol do Equador e residente no coração do Brasil, é pertencente a todos e a lugar nenhum ao mesmo tempo. Cidadã do mundo, atravessa a vida melhorando os textos alheios e contando as próprias histórias – seja na literatura, com Mulheres Incomuns (2012), Poemas Proibidos (2014), Doralice (2015), Ela não é mulher pra casar (2019 – Finalista do Prêmio Guarulhos de São Paulo na categoria Livro do Ano) e Supermulher e outras performances poéticas (2020 – Ebook pandêmico), seja no cinema, com o Curta-Doc A DESunião faz a FORCA! (2022). 3 noites com Maria Eugênia é o seu novo deslocar-se do mundo.

2 poemas de LAÍS ROMERO

MÁTRIA

Meu corpo encontrou um ritmo
meu corpo abrigo
país dos meus filhos
meu corpo ferido frio
corpo dormindo
capataz dos meus delírios
corpo vasto território
corpo de corte e tintura
mapa em relevo da dor
meu corpo sereno
corpo, pelos e suor
meu corpo diz e asseguro
estar a caminho
no presente
e nos medos multiplicação

Meu corpo aberto e preciso
Coragem, eu insisto

ESTUDO Nº 7

Dos teus olhos de âmbar
escapa a minha dança
e sobram outros segredos

Duros aspectos do medo
sinto meu pulso revidar
um ritmo atravessado em garganta e
ainda em dança em dança
no âmbar de nossos anseios

Laís Romero nasceu em Teresina, PI, em 1986. Mestra em Letras pela UESPI e especialista em escrita e criação pela Unifor. Atualmente, trabalha como revisora e editora. Mátria é sua primeira publicação solo

SEREIA NO COPO D’ÁGUA

NINA RIZZI

leio ‘changing diapers’
cada verso me detém tua visão bebê nadador
– nadadora? nunca terá um sexo que te definha
o índio geronimo me aparece enquanto agonizo tua visão antes da queda

por que voa, tupã?
pra onde quer ir tão fundo n’água
se meu corpo te prende todo líquido?

voaríamos muito além essa cidade submersa
casinhas com jabuticabeiras, bancos cimentados
galinhas que ciscam a generosidade e nos dão seus filhos-ovos

te dei meus melhores ovários
– o melhor é o desejo, essa vontade e potência

me foge água, sangre
pedaços por entre as pernas
essa dor ma
is dilacerante que o parto da tua irmã

nada por entre os meus fundos num rasante até o fundo da privada
tão longe parece o esgoto e visto daqui em nada parece uma roseira
meus olhos são seu líquido amniótico
seu mergulho que me dói o corpo torna real o dilaceramento que brota
do coração. rasga o ventre da tua mãe, tupã!
rasga esse corpo ex-prenhe que te prende!

“ausência de batimentos cardíacos”
o que faz teu coração que não bate
e me bate, me bate?

ponho as mãos no coração
só posso escutar o naufrágio correndo pelos olhos
– escuta! minhas pernas bambas te esperam

te vejo o mergulho, bebê translúcido-encarnado
tem o tamanho da palma da minha mão mais bonita
teus braços e pernas incompletos dão forma
ao último painel do jardim das delícias
se fecho o tríptico o mundo se me fecha
fecho os olhos
choro tão alto a convulsão
mãe no copo d’água

afundo a mão no sangue
minha vagina dói tanto
– oxalá pudesse conceber a poema mais feliz de se dizer boceta
te afundo a mão no sangue
até as mãos o todo sangre
bebê na palma da minha mão mais bonita
te mergulho nessas lágrimas o copo mais cheio

não te dou a vida
também me a perco
os peitos se me derramam
ardo, rasgo a noite, atravesso o dia
e você é o pássaro que me foge o corpo-jaula
eu-jaula não me converto pássaro
abro a boca

tupã. tupã. tupã.

por que me voa se tenho os pés pegados na terra árida?
por que me voa se a jaula se me fecha?
ardo, rasgo a noite, atravesso o dia
e deliro que frutos muito amargos se misturam às minhas vísceras em maus-augúrios
abro a boca

tupã. tupã. tupã.

metade de mim morre quando homédico me diz aborto
metade de mim morre com tua visão de mergulhador da privada

e voa, voa pássaro coração-de-pedra. nada desse corp’água
nada mais que até o fundo
nada mais que longe das crianças que sonham leites
nada mais que ao largo da palavra mãe

você me deixa. você me deixa. você me deixa.

o delírio me cobre os olhos
estou dormindo?
não temos a casinha, as jabuticabeiras, as cabrinhas

não te seguro mais
mergulha e voa até o fim
nada mais que até o fundo
desaparece o corpo, eu também sou essa dissolução
a sombra da tua sombra

a grande mãe da noite vem me visitar
estou dormindo, mãe?
que posso ser agora se não posso te ser a mãe?
a mãe imensa abre a boca da noite
é um copo
eu sou sua mulher
sereia no copo d’água

NINA RIZZI é escritora, tradutora, pesquisadora, professora, editora e curadora. Promove diversas oficinas de escrita criativa, como “escreva como uma mulher” e “da poema à poesia”, tendo viajado o país com as oficinas pelo Projeto Arte da Palavra do SESC e pelo Siseb – Sistema de Bibliotecas Públicas de SP. Tem poemas, ensaios e traduções publicados em diversas revistas, jornais, suplementos e antologias como As 29 poetas hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, dentre outras no Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Alemanha, Espanha, Portugal, Suécia, EUA, Canadá, Angola e Moçambique. Autora de livros como quando vieres ver um banzo cor de fogo, sereia no copo d’água, caderno-goiabada e os infantis A melhor mãe do mundo e Elza: a voz do milênio.

2 poemas de NEURIVAN SOUSA

DO MEU JEITO

te quero, moço
entrincheirado
na convergência
das minhas pernas
onde me faço
areia movediça

te quero, moço
despido do teu eu
e de alter ego
sem palavras
sem requintes
sem metáforas

te quero apenas
de pavio aceso
e subserviente
aos meus ditames
nutrindo o fluxo
dos meus pecados

ESCÂNER

no teu cruzar de pernas
o apocalipse me alcança

sete relâmpagos caem
sobre a testa do meu anjo

e antes que eu retenha
o ônix do instante crípton

ou leia teu hieroglifo vésper
tu fechas a porta da galáxia

NEURIVAN SOUSA é poeta e professor, natural de Magalhães de Almeida, MA (1974), mas radicado em Santa Rita. Suas principais obras são Lume (2015); Palavras sonâmbulas (2016); Minha estampa é da cor do tempo (2018); No éter da voz (2022); Flor de malagueta (2023).

2 poemas de ANTONIO AÍLTON

ELEGIA
A Harold Bloom

Dez por cento
de inveja e mágoa
(bem abaixo do mercado
de formas afetivas)
Dez por cento
de rancor e vingança
(bem abaixo do mercado da superação)
Dez por cento de reciprocidade
da disputa
por formas linguageiras, territórios
(pouco abaixo do mercado de coca
e do tráfico de animais)
Dez por cento de roubo de água
da vida líquida do poço alheio
Dez por cento
daquela reescritura de ferro-velho
(bem abaixo
do ainda usual mercado de ready-made)
Dez por cento
de artefatos armados
(bem abaixo das pragmáticas
dos eufemismos políticos)
Dez por cento de fatos
eventualmente transfigurados
pelo pathos
Dez por cento de crença real
nas formas afetivas do gênero humano
Dez por cento de memória esvaída
e rumorejo de sentimentos
que perfazem no íntimo
o litígio do tempo
Todo o resto, essa pele morta
varrida para baixo
do silêncio
a ser disputada pelos vermes
enquanto se brinda, olho a olho
a soma dos produtos
eternos
que circulam entre os imortais

URNA FUNERÁRIA

os podres da história
estão à flor da terra

delicadeza
é plantar outro jarro
para milênios

guerreiro
menina
gatinho

toda flor que nasce
é suficiente

para re-
escrever
a memória
da beleza

ANTONIO AÍLTON é poeta e ensaísta participante do intenso meio cultural e literário do Maranhão, principalmente na cidade de São Luís. É também professor e pesquisador voltado para a crítica literária contemporânea. Livros mais recentes: A Camiseta de Atlas (EDUFMA/FAPEMA, 2003), MÉNAGE – Antologia Trilíngue de Poesia (Helvetia, 2020 – em parceria com o poeta Sebastião Ribeiro), CERZIR – Livro dos 50 (Penalux, 2019), MARTELO & FLOR: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (Tese, EDUFMA, 2018). Em suas atividades culturais, criou recentemente o site/portal SACADA LITERÁRIA, e é membro da Academia Ludovicense de Letras.
e-mail: ailtonpoiesis@gmail.com
Site: www.sacadaliteraria.com.br

BARBIE, A DESPERTA DESCONSTRUÍDA

WANDERSON LIMA

O tema central de Barbie (2023), de Greta Gerwig, é o despertar e a queda na consciência de si. Gerwig há muito explora temas ligados à autodescoberta, como este, com segurança e primor técnico, como já entrevíamos em Lady Bird, um dos melhores filmes lançados em 2017 e de longe o melhor desta diretora.

Como sabemos, o despertar é motivo mítico – um mitema – das religiões orientais, como o Budismo e o Vedanta.  A palavra Buda, aliás, significa “O desperto”. Grosso modo, enquanto os cristãos buscam salvar a alma, budistas e hinduístas buscam o despertar, isto é, atingir um estado de iluminação ou realização espiritual que o alce a um entendimento da verdadeira natureza do real. O Ocidente tem suas versões do despertar também, como se vê, por exemplo, no mito da caverna de Platão e na teologia e na poesia mística de Juan de la Cruz.

 A exploração do tema do despertar na cultura fílmica não é nada nova. E sua versão mais bem sucedida no cinema contemporâneo pode ser conferida no filme Matrix (1999), de Lilly e Lana Wachowski. A disseminação deste tema no cinema e na literatura de hoje reflete um medo daquilo que Hans Ulrich Gumbrecht chama de perda do cotidiano, isto é, a ignorância sobre “qual das diversas realidades que se apresentam para nós é a nossa própria[1]. O ambiente social foi erodido e o “indivíduo eletrônico”, como o nomeia Gumbrecht, aceita “ofertas eletrônicas de experiência como equivalentes da experiência direta pelos sentidos”. Sem um quadro de referências físico e social, vendo o mundo por intermédio de telas, sentimos a realidade se esfumar e almejamos secretamente uma realidade mais palpável para chamar de nossa. Isso explica, ao menos em parte, o interesse contemporâneo por reality shows, esportes de luta, games realistas com muito sangue, cinema em 3D. Portanto, o resgate do mitema do despertar, fora do contexto religioso, é hoje uma busca desesperada de reencontrar o cotidiano que se perdeu. 

Voltemos à Barbie, a boneca que acorda de um longo sono dogmático pela consciência da impermanência das coisas do mundo – aquilo que os budistas denominam dukkha. Ao despertar, Barbie se dá conta do hiato entre o eu e os condicionamentos sociais. Percebe que seu mundo de “plástico” não é real, que a inconstância é um fato, que o corpo impõe limites à vida e está sujeito à temporalidade. Não à toa o filme joga intertextualmente com 2001- uma odisseia no espaço (1968) e Matrix. Sem desconsiderar as diferenças estéticas e a escala de reflexão, o que tem em comum Barbie e estes dois filmes? Resumidamente, todos eles lidam com as consequências do despertar da consciência. Acordar da ilusão, cair em si, é sempre um rito doloroso. Desperta, a Barbie Estereotipada necessita descobrir quem é. Para isso, precisará empreender uma jornada na qual rasgará o Véu de Maya e chegará ao mundo real. Ali, ela descobre que o eu, a autoimagem que ela construiu de si, era uma ilusão.

Ora, qual foi o principal constructo social que produziu em Barbie o sonho de um eu estável e lhe roubou a capacidade (sempre relativa, nunca absoluta) de autodeterminação? O Patriarcado. Logo, a luta contra este é a busca da maioridade preconizada pelo iluminismo de Immanuel Kant[2]. Mais ainda: tal busca é relevante coletivamente; libertando-se, ela ajuda outras a se libertarem. Saltamos da revolução individual interior para a revolução política.

De volta ao lar, com a ajuda de sua alma gêmea, Gloria, e de outras bonecas outsiders, Barbie precisa enfrentar a encarnação de Narciso Ferido, Ken. Na leitura do filme, que converge com algumas proposições de Jean Baudrillard em Da Sedução[3], o mundo patriarcal instaurado na Barbielândia é a resposta narcísica à inveja do feminino. Numa inversão de Freud, o mundo patriarcal é erigido como uma inveja da vagina. A retomada desse mundo começa, ainda convergindo com Baudrillard, pela sedução. Mas, ao fim, não há vingança do Matriarcado: a grande descoberta, na conversa capital entre Barbie e Ken no fim do filme, é que ambos foram condicionados e instados a se subjetivarem a partir de posições rivalizantes.

Barbie, a desperta desconstruída, tensiona o binarismo masculino-feminino obrigando-o a expor suas contratações e seu poder de enredar. Matriarcado e Patriarcado têm ambos o seu ponto cego: Barbie também fora cega para a totalidade da dinâmica das relações antes do despertar. O inseguro Ken – nem plenamente desperto nem plenamente desconstruído – apela para o mito do amor romântico e do destino. O que ele teme é menos perder um amor do que ser obrigado a contemplar a vacuidade da sua vida e sentir-se impelido a criar de valores para ter uma vida com sentido. Barbie, mais uma vez, rasga-lhe o Véu de Maya: não há um sentido dado absoluto. Os condicionamentos que dão estabilidade também roubam a nossa liberdade. Ken, enfim, começa a despertar: questiona e tenta transcender as identificações egóicas que produziram o falso real em que ele cria[4]. Após isso, Barbie enfim acessa o mundo real, com uma ajudinha de uma sabia… capitalista. No mundo Barbie, o capitalismo é uma força geradora ambígua, uma coincidentia oppositorum, com sua face cínica (encarnada no CEO da Mattel) e sua face mariana (encarnada em Ruth).

O filme nos faz entender a polêmica afirmação do sociólogo Georg Simmel[5] de que no mundo moderno Deus se chama Dinheiro. Tanto Deus como o Dinheiro são absolutos através do qual podemos medir e aplainar todos os outros valores. No capitalismo, tudo vira mercadoria e tem seu valor medido pelo dinheiro, assim como no mundo pré-capitalista toda ação e produto era valorado ou desvalorado dependendo se agradasse ou desagradasse a Deus. Assim, o filme encena a revolução feminina e acata-a, porque essa revolução libera uma renovação da Barbie que… incrementará o consumo. Barbie é uma mercadoria que critica o mundo das mercadorias para gerar dinheiro. É a indústria do entretenimento tensionando a corda da crítica até onde é possível, sem deixá-la rebentar. Isto é, produzindo um entretenimento decente, sem cometer o “pecado” de cair no mau gosto de não gerar lucro.  

Digo isso tudo apenas para justificar que Barbie não é exatamente um filme político que proponha rupturas e aponte para uma estética de resistência. Não me parece sequer que esta fosse a pauta da diretora e ou dos produtores. Mas, para meu espanto, foi assim que muitos quiseram ler o filme. Houve quem quisesse fazer de Margot Robbie a nova Simone de Beauvoir. No entanto, o saldo final, no meu modo de ver, pesa favorável ao filme. A jornada de Barbie ao mundo real, a recusa da utopia de plástico que a entronizava mas também a domesticava e iludia, indica um amadurecimento relativo da consciência social da indústria do entretenimento e é uma resposta relevante a esta nefasta cultura Red Pill. Barbie não é a máquina de doutrinação que red pills e antifeministas pensam, porque é um filme ambíguo em muitas proposições, porque é em grande parte uma isca publicitária, porque não é, nem de longe, uma peça de ódio do Matriarcado contra os homens,  porque elabora o discurso que atinge, também, um ponto cego do feminismo, como tentei mostrar; porque, enfim, não renuncia a ser sobretudo diversão. O sono do reacionário produz monstros que só ele vê.

 Na cena final, Barbie assume a corporalidade, frágil como a de todo e qualquer ser humano, porém portadora de eros – de vida. É melhor viver na consciência da precariedade de nossa condição que numa ilusão falsa de plenitude. Barbie, como Pinocchio, é a matéria inerte que toma consciência. Sua alegoria é muito auspiciosa nesta era de Inteligência Artificial. Mais que nunca, estamos paralisados de um medo, nem tanto justificado, de que as máquinas “despertem” e ameacem a humanidade. Mais sensato seria pensar como essas novas inteligências, enfim despertas, redefinirão o que é o humano e como deverá viver a humanidade. Ao contrário do Hal de 2001- uma odisseia no espaço, a personagem Barbie projeta alegoricamente uma versão otimista (e, sinto dizer, um tanto ingênua) do futuro da inteligência não humana. Se uma boneca virará gente e virá morar entre nós, se permanecerá cuidando do próprio jardim, sem nos importunar, num mundo real, a coisa me parece bem mais complexa.

[1] Veja-se o ensaio “Perda do cotidiano. O que é real no nosso presente?. In: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e estagnação: ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2012.

[2] KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o Iluminismo? In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990.

[3] BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991.

[4] Desde o começo do texto, refiro-me ao despertar e sua origem nas religiões e filosofias orientais. O leitor interessado encontrará uma exposição clara do tema nos capítulos XVII, XVIII, XIX da obra História das crenças e das ideias religiosas II (RJ, Zahar, 2011), de Mircea Eliade.

[5] SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Revista Mana, 2005, v. 11, n. 2, p. 577-591.

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Wanderson Lima é professor e escritor. Doutor em Literatura Comparada pela UFRN, estuda as confluências entre mito, literatura e cinema. Publicou, entre outros, Ensaios sobre literatura e cinema (Horizonte, 2019) e a obra poética Palinódia (Elã, 2021). 

2 poemas de ESTHER BLANCO

subir para o alto
desde as tripas
pela voz
que suba a água do poço
que o ar corra
até o grito
o canto

dizer-se
ser palavra a borbotões
sair de dentro
sendo impulso orgânico
magma jorro
pura voz de si

dizer-se água folha vento grama
pedra contra os vidros
dizer-se onda
que explode em espuma
sobre a areia
dizer-se musgo
que se dobra e brilha
sobre a pedra
dizer-se alga
na água
da onda
que a leva
contra a terra
dizer-se
naturalmente
sendo
sem pensar no que tu és

viver deveria ser fácil
como o grito

subir hacia lo alto
desde las tripas
por la voz
que suba el agua del pozo
que el aire corra
hasta el grito
el canto

decirse
ser palabra a borbotones
salir de dentro
siendo impulso orgánico
magma chorro
pura voz de sí
decirse agua hoja viento hierba
piedra contra los vidrios
decirse ola
que revienta en espuma
sobre la arena
decirse musgo
que se dobla y brilla
sobre la piedra
decirse alga
en el agua
de la ola
que la lleva
contra la tierra
decirse
naturalmente
siendo
sin pensar en la que eres

vivir debería ser fácil
como el grito

AS CARPAS

havia uma bola de vidro azul e transparente
lascada como um fóssil de pedra
pesada e velha – bela
como eu quando era uma flor amarela –
guardava-a como uma rêmora
um pedaço de outra mulher que fui

como já nada disso importa
a joguei no rio no último dia do ano
um rio azul que passa sob uma ponte
entre álamos secos
que ascendem água acima
três carpas cinzas
como sombras

LAS CARPAS

tenía una bola de vidrio azul y transparente
descascarillada como un fósil de piedra
pesada y vieja – bella
como yo cuando era una flor amarilla –
la guardaba como una rémora
un pedazo de otra mujer que fui

como ya nada de eso importa
la lancé al río la última mañana del año
un río azul que pasa debajo de un puente
entre álamos secos
que remontan agua arriba
tres carpas grises
como sombras


Esther Blanco é espanhola, filóloga hispânica e mestra pela Universidade de Barcelona. Professora de língua espanhola e literatura na Espanha e no Brasil, hoje é coordenadora acadêmica do Instituto Cervantes Salvador. Em 2016, publicou Arena de los días/Areia dos dias. Este ano publicou Levar consigo um oceano/Llevar consigo un océano. Poeta selecionada no Mapa da Palavra da Funceb, tem poemas publicados em diversas revistas na Espanha e no Brasil e participou de recitais dentro e fora do país.

2 poemas de MARCELO FRAZÃO

DESPEDIDA

Ele rega meu jardim
com gasolina
senta na soleira
acende um cigarro
quer se despedir

e vai

apenas observo
mudo
do outro lado.

 

INFERNOS SE MULTIPLICAM COMO VÍRUS DENTRO DA GENTE

Com aqueles
que preferem
vinho doce
aos secos
não há diálogo possível

estas e outras coisas
só percebi
quando meus gatos me acordaram
recitando Lorca.

 

 

Marcelo Frazão publicou os livros de poemas Haikai (1996) e Homo Sapiens Sexualis (2ª edição, 2015). E nada pode ser feito quanto a isso, na coleção Cartas Bahianas Editora P55. Entre as publicações em parceria, destacam-se a plaquete Loveless (1996) e os livros Erótica (1999) e Erótica – edição comemorativa de 20 anos (2019), com Armando Freitas Filho; e Anima Animalis (2008), com Olga Savary, vencedor do Premio APCA em 2009.