NATIMORTO

RONALDO CAGIANO

A morte o esperava como um ventre.
Carlos Nejar

Desceu apressado o último lance da ladeira que liga a favela ao asfalto, tênue a fronteira entre dois mundos.

Embaixo, a agitação feérica em tudo difere da camaradagem do morro, onde a comunidade se (re)conhece nas solidárias demandas de cada dia.

O dorso à mostra decalcado de tatuagens: uma caveira nas costas, a estrela de David no peito, versículo dos Provérbios na panturrilha esquerda, Sandra esculpida no ventre e o rosto de Che no calcanhar direito. Apenas um short, suado da caminhada sob o calor implacável, a epiderme expondo-se como um outdoor de mensagens, textos e traços que se misturam num convívio simbiótico de expressões religiosas e políticas. O marxismo e a bíblia lado a lado, o insondável por testemunha.

O guri continua seu passo, numa das mãos uma sacola vazia, o cabelo de um louro artificial recebendo os raios de um sol escaldante, o trânsito ali impedindo-o de vencer o espaço que o separa da outra ponta, onde a avenida é um boulevard de ofertas, um pout-pourri de gente a caminho do trabalho ou de casa, outros em busca de alguma coisa, vai-e-vem de passos antagônicos, no entretempo dos que-fazeres e olhos que se cruzam e não se veem.

Uma senhora de óculos com lentes fundo-de-garrafa, entre balbucios inaudíveis, divide com ele a atenção no fluxo divergente de automóveis, mas recua depois de tentar em vão ziguezaguear entre o escorrer da centopeia metálica naquele meio-dia repleto de velocidade e urgências. Vai-não-vai, passos indecisos em  meio ao trânsito que se retroalimenta numa fluidez descomunal. Os dois ali, estáticos e inermes, diante da força bruta do movimento que parece nunca ter fim.

Ergue-se na ponta dos pés e reconhece na calçada oposta a figura de Wesley, o parceiro das quebradas, a quem grita pelo apelido: “Baiano, ô, Baiano!”, expande a voz num ricochete inócuo e ainda mais uma vez insiste no apelo, mas o “parça” segue sem ouvir o chamado, certamente sua audição impugnada pelo burburinho e estridência dos sons na hora do rush. E sua figura se esfuma no emaranhado de vozes, sons e imagens da metrópole apressurada. Anônimo e resoluto, como areia  na ampulheta, continua na apreensiva tentativa de seguir em direção ao seu destino.

Nem bem o semáforo alternou-se para o verde, a mulher já a meio da via só escutou o barulho surdo do projétil que o derrotaria naquela sexta-feira sem outra novidade qualquer, senão o calvário de que são feitas certas vidas.

Para não tumultuar o trânsito, uns poucos que flagraram o acontecimento antes de a Polícia chegar, retiraram o corpo (silenciado, pálido, já desligado da feroz mecânca daquele dia), a sacola de plástico já havia se extraviado com o aparato de ventos naquele corredor de veículos e motos, um chinelo ainda guarnecia um dos pés.  Entre a indiferença e o temor, curiosos olhavam de soslaio; um bêbado chegou com uma vela e colocou-a rente à cabeça do cadáver, que não trazia celular nem documentos, somente no bolso uma bagana pela metade que já se encharcava com o fio vermelho a escorrer vultoso do lado esquerdo inundando-lhe a epiderme como uma severa e sinistra pichação.

                                                                                                              

Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e está radicado em Portugal. Formado em Direito, é autor, dentre outros, de Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP, Prêmio Jabuti 2016); Cartografia do abismo (Poesia, Ed. Laranja Original, SP, 2020) e Arsenal de vertigens (Poemas, Ed. Húmus, Lisboa, 2022).

CAROLINA, MEU AMOR

WAGNER LEMOS

Machado de Assis amou intensamente. O autor que, segundo Antônio Candido, vale por toda uma literatura, teve em Carolina, sua esposa, um dos mais significativos amores e que foi traduzido em poema na forma de saudade, quando ela se foi desta terra material. Luiz Gonzaga também versejou e cantou uma Carolina, personagem que, na canção, aparecia faceira e intrépida exaltando até mesmo uma grafia de seu nome diferente da habitual. Confesso que também me quedei e quedo de amores por uma Carolina. Com Machado e Gonzaga, mantenho as intersecções de sermos homens negros dedicados à prosa e ao verso, encantados por uma Carolina.

Admito que a paixão por ela veio, não nos arroubos da adolescência, em que a cabeça perde o norte e o coração desmantela por inteiro. Na época, com uns trinta e muitos anos, já tendo uns fios brancos nas têmporas, foi que nosso encontro aconteceu. Ela me seduziu pelas coisas que mais me encantam: sensibilidade, inteligência e dom da palavra. O verbo se fez carne: a sua palavra ecoou em mim e me fez ver as afinidades. Ela, sorrateira, encontrou em nossas semelhanças o jeito de me prender nos seus fios invisíveis. Desde, então, estou emaranhado nela. Já passei dos quarenta anos e já coleciono mais fios brancos para além das têmporas. No entanto, a paixão não esmoreceu. Pelo contrário, ganhou corpo e tonificou em amor.

Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960), é a senhora dos anseios e inquietações deste aprendiz de escriba.  Suas palavras, frutos da agudeza de suas retinas atentas ao mundo, pude ter a dimensão para compreender quem sou, quem somos. Nos momentos em que faltaram palavras para traduzir o quanto me sentia vindo da periferia e tendo a discriminada pele negra, Carolina, bem antes de eu nascer, já fizera isso. Isso indicava, porém, que de seu tempo ao meu, nada mudara. Nós, negros, continuávamos sendo escanteados a uma condição de pobreza, num crônico racismo estrutural. Nós, negros, continuávamos relegados ao olhar de desprezo para a cor da noite gravada em nossa pele.

De catadora de papel a empregada doméstica, passando por fenômeno editorial, depois esquecida ao ponto de novamente catar papel, Carolina soube muito mais deste país do que aqueles que, dentro de gabinetes, se arvoram a ser intérpretes da nação. Seu senso de realidade a fazia entender o país de modo a afirmar que só teríamos prumo, quando o governante fosse alguém que tivesse conhecido a fome. Não há afirmação mais certeira. Aquele que detiver o poder decisório precisa bem mais do que a empatia. Precisa de sua dose particular de realidade. O mais triste nisso tudo, é que os escritos de Carolina não deixaram de ser sobremodo atuais diante do que vivenciamos no país. Afinal, disse ela “não é preciso ser letrado para compreender que o custo de vida está nos oprimindo”. Com razão, também escreveu na última página de seu mais famoso livro: “a pior coisa do mundo é a fome”. Ela sabia do que falava. Carolina, meu amor.

Wagner Lemos é doutor em Literatura Brasileira (USP) com pós-doutorado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e líder do Grupo de Pesquisa em Literatura e História (CNPq/UNEB). Autor de Sergipe entre Literatura e História, Tempo de Mangaba; De Sílvio Romero para sua gente, Sílvio Romero e José Veríssimo em combate e organizador da Antologia Escolar da Literatura Brasileira e de Belle Époque e sertão: a linguagem em busca do Brasil; tem no prelo sua 1ª obra infantil, A menina que colhia estrelas.

A ESTRANHEZA DAS IMAGENS DE LYNCH

 WANDERSON LIMA

  

A filmografia de David Lynch utiliza dispositivos que nos imergem em uma experiência de perda do senso de realidade. Somos conduzidos a um estado de desconforto que, por alguns instantes, desnaturaliza nossos hábitos e práticas cotidianas. Esse breve hiato, dependendo do espectador, pode culminar em um frenesi inconsequente ou servir como ponto de partida para uma reflexão mais profunda. De qualquer forma, é nesse processo que reside a singularidade e a força do cinema de Lynch: mais do que narrar histórias de maneira convencional, ele se dedica a criar atmosferas[1]; mais do que ensinar lições ou defender ideologias, ele busca convocar sensações.

Se quisermos precisar melhor quais dispositivos, diremos que Lynch oscila entre a noção clássica de grotesco estabelecida por Wolfgang Kayser – a desfiguração do familiar, que conduz a uma sensação de inquietação e deslocamento e que combina o cômico e o aterrorizante, criando um efeito de ambiguidade e tensão – e o estranho (Unheimlich) estudado por Sigmund Freud, isto é, a ideia de algo que deveria ser reconfortante, mas que é transfigurado em algo desconcertante ou ameaçador.  Em sua forma mais intensa, o Unheimlich pode ser um retorno do inconsciente, uma manifestação de medos e desejos reprimidos, que rompe com a segurança do conhecido. Seja como for, por meio do grotesco ou do estranho[2], quando assistimos Lynch nos falta o chão: o familiar se transmuta em infamiliar, o cotidiano se torna insólito. Essa mescla de distorção e retorno do reprimido é central nas obras de Lynch, onde o cotidiano e o aparentemente comum se tornam cenários de estranhamento e incerteza.

Se observamos bem, essa sensação de desconforto e de perda do real, em si, não é revolucionária ou transformadora. Em boa parte de suas manifestações, em comunidades abrigadas nas redes sociais e em subgêneros da cultura gótica e heavy metal, o grotesco e o estranho tornam-se mecanismos escapistas, fuga do mundo adulto racionalizado, ou meras manifestações de irreverência. Mas, em Lynch, torna-se uma estratégia para construir um mundo muito próprio e lançar questionamentos que, em última estância, nos convidam a pensar a complexidade do real para além dos parâmetros realistas e pragmáticos da representação clássica hollywoodiana[3]. Como instava Luis Buñuel[4], o que certamente converge com a prática de David Lynch, o cinema não deve se limitar a reproduzir a realidade objetiva, mas sim transformá-la e transcendê-la por meio de uma abordagem poética.

Buñuel e Lynch transformam o banal em algo extraordinário e perturbador, mostrando que o cinema pode ser muito mais do que uma simples ferramenta narrativa. Para ambos, o cinema é uma arte capaz de acessar o que está além da palavra, penetrando nos mistérios da mente humana e no imaginário coletivo. No entanto, enquanto Buñuel, mais crítico e iconoclasta, recorre à poesia das imagens para desmontar as convenções sociais e religiosas e desvelar as contradições do mundo burguês, usando sonhos e imagens irracionais para explorar desejos, medos e tabus ocultos, Lynch — embora também expresse as contradições entre moralidade pública e desejos sombrios — busca uma poesia cinematográfica mais na atmosfera e no poder sensorial das imagens e sons do que na subversão ou exposição direta das contradições sociais.

Podemos afirmar que, em David Lynch, o desconforto gerado pela ausência de solidez no mundo e pelo bizarro que corrói a norma constitui a etapa destrutiva de seu trabalho. É possível que nos estacionemos nesse ponto, encerrando nossa experiência estética em uma visita — fascinante para uns, angustiante para outros — a um mundo grotesco. No entanto, podemos dar um salto além se compreendermos que, em Lynch, ao movimento de contração segue-se um movimento de expansão: primeiro, perdemos o mundo; depois, descobrimos que ele é muito mais amplo do que imaginávamos.

Além de um olhar automatizado, que desmagiciza nossa fruição das imagens, tendemos a estabelecer fronteiras muito nítidas entre o real, o imaginário e o onírico. Lynch propõe um retorno à inocência e ao embaralhamento pré-lógico das fronteiras. Ele desce às fontes turvas do inconsciente[5] de onde extrais padrões transpessoais – arquétipos – para moldar grande parte de seus personagens. Seus filmes emergem, pois, do choque entre sua peculiar bizarrice e os modelos universais facilmente identificáveis, e por isso se parecem com um misto de pesadelo e conto de fadas.

Até mesmo nos curta-metragens, Lynch encena como que uma epifania da realidade: tudo o que vemos torna-se infamiliar, misterioso – e nisso vislumbramos um significado mais profundo ou uma verdade subjacente de algo na realidade. O grande problema, a meu ver, é a difícil decodificação desta verdade. Trata-se de uma obra resistente à lógica redutora da interpretação. As imagens de Lynch não constituem um sistema organizado que pode ser trivializado em algum discurso edificante. São imagens poéticas, lúdicas, que mantêm seu núcleo de mistério. Muito se discute se Lynch é ou não um artista surrealista; independentemente disso, há um ponto que ele compartilha com esse movimento: a tentativa de extrair, do fundo do ser, imagens puras, não racionalizáveis, e, portanto, resistentes a uma redução alegórica.

A palavra mistério, frequentemente evocada aqui, está no cerne da experiência religiosa, tal como descrita pela fenomenologia do sagrado[6]. O misterium tremendum — aquele misto de assombro e fascínio que o ícone sagrado ou a experiência epifânica desperta no homo religiosus — é algo que o cinema de Lynch tenta infundir nas imagens de seus filmes. Contudo, essa busca não carrega um propósito de proselitismo religioso. Para Lynch, religião e mito não são objetos de reverência, mas repositórios das grandes imagens que sintetizam os dilemas da condição humana. Ele os utiliza como ferramentas para insuflar estranhamento e densidade em seus personagens e nas situações que vivem.

O resultado é um misterium tremendum profano, uma experiência que nos obriga a questionar nossos sentidos e a reaprender a enxergar o mundo. Diante imagens lynchianas, somos tomados por um sentimento de ignorância, um estado de perplexidade que exige tempo para digerir e decifrar. Essa convivência prolongada com as imagens nos conduz a uma outra forma de experimentar a arte, uma que privilegia as sensações e recusa a facilidade do jogo alegórico imediato — algo raro no cinema de cunho comercial.

Essa desorientação positiva diante da resistência hermenêutica da imagem se complexifica mais porque, como mencionado, em Lynch sonho e o delírio não se deixam separar do que se toma por real. A desorientação, que em filmes mais abertamente comerciais é geralmente temporária e estratégica, percorre as obras de Lynch de ponta a ponta, frequentemente sem oferecer uma resolução no desfecho. Para muitos espectadores, lidar com essas irresoluções e com um universo denso, onde as camadas de significado se confundem, é um desafio. Isso porque, em Lynch, não há qualquer aviso de que estamos adentrando um mundo fabuloso. O cinema de Lynch não é fantástico, mas faz brotar o fantástico no cerne da normalidade. O realismo fílmico não é descartado de imediato.

Assim como no Luis Buñuel de sua fase madura, Lynch preserva a representação clássica típica dos filmes comerciais apenas para subvertê-la em algum momento. A estrutura da narrativa policial, por exemplo, é evocada em seus elementos centrais — como a busca pelo assassino —, mas se dissolve em um jogo de imagens oníricas e imaginadas, que tratam a pseudotrama policial com total indiferença. Lynch utiliza o realismo não como um fim, mas como um veículo para transcender suas próprias limitações.

Os amantes da verossimilhança, do enredo de causa e consequência, da encenação pragmática podem se incomodar e querer capitular. Custa caro romper a aliança, há muito celebrada na indústria cinematográfica, entre cinema narrativo e prazer visual. Mas quem tiver paciência verá que Lynch não é apenas um brincalhão ou um surrealista fora do tempo: ao confundir os planos da existência (real, onírico e imaginário) e liberar sua sombra pessoal, o cineasta nos brinda com narrativas grotescas que oferecem um mundo mais integral do que o realismo social diurno, predominante no cinema americano, no qual o CGI é a única concessão ao sonho e ao delírio.

O espetacular, em Lynch, não se manifesta como tiro, porrada e bomba, mas como algo profundamente entrelaçado à vida cotidiana. Não há uma separação rígida entre a existência comum e o sobrenatural ou o mistério. O que Lynch apresenta é o homem em sua totalidade, inserido em um real que transcende a ordem material captada pela câmera. Pois o homem sonha, delira e imagina — e esses elementos, longe de serem ilusórios, também pertencem à ordem do real.

Refletindo sobre o grotesco, Wolfgang Kayser apresenta argumentos que encontram ressonância no trabalho de David Lynch. Kayser sugere que o grotesco adquire especial relevância na modernidade, quando o ser humano perde o senso de unidade e segurança em relação ao mundo. Nesse contexto, o grotesco emerge como uma resposta artística à crise existencial e à fragmentação da realidade contemporânea. É nesse terreno que se inscreve a obra de Lynch. Contudo, em Lynch, há um esforço para transcender essa fragmentação por meio da sobreposição, na trama fílmica, dos âmbitos objetivos e subjetivos da experiência humana. O resultado dessa sobreposição não é a restituição de uma totalidade perdida, mas a integração do homo demens (irracional, emocional e poético) ao homo sapiens (racional)[7], do homem que sonha ao homem que trabalha, do bárbaro ao civilizado.  Incorporar o sapiens ao demens, reconhecendo a importância da imaginação, do delírio e do sonho na construção de uma psique mais equilibrada, diria até de uma sociedade mais equilibrada, é uma tarefa de relevo que Lynch realizou como poucos.

Wanderson Lima é professor e escritor. Doutor em Literatura Comparada pela UFRN, estuda as confluências entre mito, literatura e cinema. Publicou, entre outros, Ensaios sobre literatura e cinema (Horizonte, 2019) e a obra poética Palinódia (Elã, 2021). 

[1] Para Gumbrecht, a atmosfera é central à experiência estética, pois permite que o espectador interaja com a obra de arte em um nível pré-reflexivo, sem necessariamente buscar decifrar seu significado. Em vez disso, a atenção se volta para como a obra faz sentir. Isso desafia abordagens hermenêuticas centradas exclusivamente na interpretação e na extração de significados. A atmosfera não se limita ao significado do objeto, mas envolve o impacto físico e emocional que a obra exerce. Ver mais em: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio, 2010.

[2] A caracterização aqui é demasiado sumária. Para um aprofundamento das duas noções, ver: KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva, 1986. E também: FREUD, Sigmund. “O inquietante”. História de uma neurose infantil (O homem dos lobos): além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 328-376.

[3] Sumariamente, David Bordwell assim caracteriza o padrão da narrativa clássica de um filme hollywoodiano:  1) a narrativa é guiada por personagens que têm desejos claros e objetivos bem definidos; 2) o estilo visual é transparente, ou seja, as técnicas cinematográficas (edição, movimentos de câmera, iluminação) são projetadas para não chamar atenção para si mesmas; 3) a história é apresentada de forma clara, com um início, meio e fim bem definidos; 4) cada evento tem uma função na narrativa, com uma lógica de causa e consequência; 5) não há elementos narrativos “gratuitos”; tudo serve para avançar a trama ou desenvolver os personagens; 6) as histórias têm resolução completa, fechando os arcos narrativos e eliminando ambiguidades. Para um maior aprofundamento, ver: BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. In: RAMOS, Fernão (org.). Teoria contemporânea do cinema 2. São Paulo: Senac, p. 227-301.

[4] As ideias de Buñuel sobre cinema de poesia podem ser conferidas em: BUÑUEL, Luis (1991) “Cinema: instrumento de poesia”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, p. 333-337.

[5] Penso aqui nas ideias sobre o inconsciente – pessoal e coletivo – de Carl Jung. Ver em: JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.

[6]  Rudolf Otto define o sagrado como o “totalmente outro” (ganz Andere), algo que está além da compreensão humana e se revela como uma presença misteriosa. Essa experiência é irracional no sentido de que não pode ser completamente explicada ou compreendida pela lógica ou pelos conceitos. O mysterium tremendum é uma expressão central em sua obra e caracteriza a experiência emocional diante do sagrado. Ver mais em: OTTO, Rudolf. O sagrado. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

[7] O debate sobre o Homo sapiens-demens está em Edgar Morin. Morin questiona o paradigma cartesiano, que privilegia a razão e separa o sujeito do objeto, o pensamento da emoção e o humano do não humano, e propõe que a condição humana deve ser entendida em sua totalidade e contradição. Ver, entre outras obras do autor: MORIN, Edgar. El paradigma perdido: ensayo de bioantropologia. Barcelona: Editorial Kairós, 2005.

2 poemas de BIOQUE MESITO

CADUCA

há entre as coisas um desejo insatisfeito
insano destino que chega entre as gentes
o silêncio da pedra que acorda nossa alma
perpétuo ser deslizante às cores cinzentas
não existirá mais nenhuma veloz mudança
nem os discursos entre as línguas insossas
pois o vento de uma tarde inteira sozinho
ou mesmo o fecho de uma mulher na face
poderão conter o fogo que arremessas
dos olhos toda tristeza que guardamos
na frondosa rosa que choca-se ao chão
os perigos de existir não são desfechos
atirados ao relento pelas nossas culpas
ao morrer despimo-nos de toda essência

 

A CASA DAS PRIMEIRAS INVENÇÕES

a minha avó limpando o terreiro
me lembrava a velha da litania
as paisagens mórbidas e sutis
do antigo bairro do sacavém

não sei ao certo o que ela catava
talvez folhas ou inúteis pedregulhos
ficava imaginando aquele mundo
como se as tardes fossem minhas

em seus estampados de chita
dançava sinuosa entre a chuva
segurando as cadeiras na varanda

observava subir entre os telhados
pegando frutos que caíam maduros
sem saber que tudo um dia acabaria

 

Bioque Mesito é poeta, nascido em 3 de fevereiro de 1972. Possui vários prêmios em concursos de poesia em âmbito local, regional e nacional. É autor dos livros de poemas A inconstante órbita dos extremos (Editora Cone Sul-SP, 2001 e com reedição comemorativa aos 20 anos de seu lançamento pela Editora Penalux-SP, 2021); A anticópia dos placebos existenciais (Edfunc-MA, 2008); A desordem das coisas naturais (Editora Penalux-SP, 2018); Odisseia do nada registrado (Editora Penalux-SP, 2020) e Uma estranha maneira de se comparar amanhãs (Editora Penalux-SP, 2021).

2 poemas de TITO LEITE

STRAVINSKY

A vida, ainda que hercúlea,
é estreita: não há iluminuras
sem o extermínio de uma estrela.

Em cada ode, o poeta canta
uma morte: como quem recria
uma semente de alegria
no recreio dos segregados.

Rosa primavera sacrificada.
Queremos o insonhável:
a sagração do juízo inicial.

ANDES

Gosto dos mochileiros
que caminham pelos
Andes com o peso do
mundo em seus diários

vendendo seus artesanatos
baratos quase trocando
por um cigarro

como quem
se torna pombo de praça
ou faz de um origami
uma montanha.

Gosto dos mochileiros
que caminham pelos
Andes carregando outros
mundos em seus olhos

como se o hoje fosse
uma aurora nômade.

Tito Leite nasceu em Aurora (CE) em 1980. É mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Poeta e ficcionista, é autor dos livros de poemas Digitais do caos (2016, edith), Aurora de Cedro (2019, 7letras) e A palavra em seu deserto (2023, Cloe). Estreou na prosa em 2022 com o romance Dilúvio das almas (Todavia). Jenipapo Western, é o novo romance (2024, Todavia).

AS PERSONAGENS QUE VIVEM…

HERASMO BRAGA

Para Iara…

Não há qualquer segredo ao se afirmar que em grandes narrativas a presença de personagens fortes é evidente, do contrário, diante de personagens fracas não há como viabilizar narrativas relevantes. Foi-se o tempo das abordagens literárias restringirem-se a detectar a presença ou não dos seus elementos principais como espaço, tempo, personagens e, obviamente, o mote da história. E a partir daí promover classificações superficiais. No ponto relacionado às personagens, a pluralidade de análises parte das observações em torno das suas subjetividades e do quanto elas são ou não densas ao ponto de portarem-se para além da narrativa na qual ela se encontra envolvida, de elas exercerem fortes influências em personagens de outros enredos e até mesmo marcarem autores distintos daquele que as concebeu em primeiro momento. Os exemplos são inúmeros, como Dom Quixote, Fausto, Marcel, todavia, os olhares agora estarão voltados para Emma Bovary e Ísis.

As figuras femininas como Emma, que compõe o primoroso romance Madame Bovary de Gustave Flaubert, e Ísis, uma das protagonistas de outra grande narrativa de Raimundo Carrero, Somos pedras que se consomem, exercem pleno fascínio e influência diante daqueles que interagem por meio das suas subjetividades e realizam uma conexão formativa, apicaçando sentimentos guardados e encorajando seus leitores a vivenciar sua plenitude. Ingênuo ainda quem concebe a personagem como algo restrito somente a uma trama, formulada pela imaginação de um autor, e apenas contribui para o desenvolvimento da narrativa. Inicialmente, as melhores personagens são sínteses de sujeitos reais, representados nos pontos mais significativos não só para a história em progresso, como também para o despertar e entendimento dos próprios indivíduos em sua maior intimidade. Assim, não constitui qualquer exagero ou mesmo delírio quando autores consagrados como Mário Vargas Llosa, em entrevistas e produções críticas, sempre eleva Emma Bovary como a personagem cravada em seu ser. Não há dúvida alguma no que se pode denominar de “arquétipo de Emma Bovary” fazer-se presente em inúmeros traços em personagens dos textos ficcionais de Llosa, a exemplo de Lily do seu fascinante romance Travessuras da menina má.

Esse embevecimento ocorre não por mera influência literária ou por mera explicação de estilo. A perpetuação advém pelo “encontro de almas” entre personagem e leitor. Isso sempre foi possível, desde o século IV a.C., quando Aristóteles já apontava em seus estudos sobre a tragédia, condensada em A Poética. Para ele, imitar é algo inerente ao ser humano. Diante disso, não se deve entender no sentido delimitado apenas ao homem enquanto ser real, mas a qualquer elemento que produza representações como as personagens. Em A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary, em que Mário Vargas Llosa lança aos estudos acerca da escrita de Flaubert, ele se dedica mais na abordagem de Emma Bovary nos mais interessantes pontos que justificam a sua grande e influência não só em outros personagens, como também, em autores como ele. Desta, nas primeiras páginas: “[…] têm a ver com algo que ela e eu temos muito em comum: nosso incurável materialismo, nossa predileção pelos prazeres do corpo sobre os da alma, nosso respeito pelos sentidos e pelo instinto, nossa preferência por esta vida terrena diante de qualquer outra”. Essa convergência em intimidades não advém de mera convenção, mas algo que arrebata em todos aqueles ao perceber as inquietações de Emma em nunca se conformar em apenas reproduzir homogeneidades de vidas oriundas das limitações interioranas em que as subjetividades são suprimidas em prol das estabilidades sociais, mesmo de uma vida superficial, mas aparentemente tranquila. A personagem Emma deseja lançar-se em diversos mundos, ampliar as experiências perceptivas de pessoas, situações, lugares, expandir-se além de Yonville.

Esse desejo inicial desperto de maneira romântica das obras que costumava ler com alvoroço desde tenra idade, serviu como posteriores necessidades, impulsionadas pelos desejos que não lhe permitiam empobrecer-se de experiências e, sim, buscar cada vez mais com intensidade. No mesmo nível de fascínio e pela veemência se encontra em Ísis que “preferia sangrar para não ter que se unir ao tédio e à náusea”, e assim “Eis o que amava: a aventura do mundo”. Ísis, como Llosa, acolhia em Emma o seu “encontro de almas”, não à toa que sempre sugeria aos próximos a leitura de Madame Bovary. Em busca dos prazeres que o mundo oferecia, Emma e Ísis se igualavam, todavia, por serem separadas temporalmente, Ísis ousava mais e pouco caso fazia para as convenções. Destarte, lançava-se a encontros em que a intensidade do momento e o esquecimento deles depois estavam no mesmo átimo. Não poderia ser diferente considerá-la como o narrador faz: “Ísis e a fome sexual dos trópicos, quente e latejante, amada e esquecida…” De fato, “Ísis é uma mulher de muitos prazeres…”. Ísis em nada se submetia, nada a limitava ou a tornava padronizada em características. Ela sempre era muitas em si e para si.

Em sua abordagem, Mário Vargas Llosa dedica a Emma o seguinte: “O heroísmo, a audácia, a prodigalidade, a liberdade são, aparentemente, prerrogativas masculinas; no entanto, Emma descobre que os varões que a rodeiam – Charles, Léon, Rodolphe – se tornam brandos, covardes, medíocres e escravos, apenas ela assume uma atitude “masculina” (a única que lhe permite romper a escravidão a que estão condenadas as pessoas de seu sexo na realidade fictício)”. Se fosse feita a mesma observação para Ísis, em nada mudaria, com base na mesma postura feminina de imposição dos seus desejos, vontades e realizações.

Assim, são personagens como essas que vivem nas subjetividades leitoras e as transformam, diante do despertar para a vida, nos mais diferentes mundos, em prol de experiências que superam as angústias e tédios do cotidiano hodierno.

Herasmo Braga é professor e ensaísta

INTEMPESTIVA, de GISELLE VIANNA

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

Teu passado / nada pode contra / o abraço que te aguarda”. Esses versos fazem parte de Repente, poema que abre o livro Intempestiva (São Paulo: Patuá, 2023), de Giselle Vianna. Mais que a oposição entre passado e futuro, a obra de Giselle oscila entre as marcas de agressão e a força da esperança e suas correspondências, abordando contrastes e tensões sem recair num maniqueísmo reducionista, extraindo versos líricos da aridez da existência.

Giselle Vianna nasceu em Campinas, São Paulo, em 1981. Formada em Direito e doutora em Sociologia, realiza pesquisas sobre trabalho escravo contemporâneo e, como voluntária do Instituto Uno, atua na alfabetização de crianças e adolescentes em situação de acolhimento na cidade de São Paulo. Suas obras anteriores, Pau-Rodado (2016) e Eclíptica: poemas venezianos (2019), remetem a um período de estadia e pesquisa no Estado do Mato Grosso e em Veneza, respectivamente.

E agora, a autora nos apresenta Intempestiva. Composta por poemas escritos entre 2016 e 2022, reflete as tensões e conflitos vivenciados no período mencionado, desde a situação político-social à angústia de cunho privado, e a partir desse manancial de violências e resistências emerge uma obra bem construída, em que os temas ainda que possam variar ao longo das páginas, mantêm um encadeamento que, juntamente com a dicção poética da autora, contribui para a coesão ao longo de todo o livro. Por diversas vezes, encontramos versos de poemas distintos que parecem dialogar entre si e até se complementarem num possível único poema. Como exemplo, os versos que se inscrevem na última página, acima do colofão: “no escuro da noite / que trama a paz e a guerra / uma criança chora / e alguém, em vigília, / protege a primavera”, que poderiam se relacionar aos seguintes versos: “algo / relampeja / no inverno de teus olhos” (A tempo, p.79) / “não é preciso / verter a lágrima / ou levantar a mão / num aceno / […] / meu vento, / como todo vento, / soprará” (No ar, p. 107) / “algo em mim / saberá distinguir / as ideias lavradas / das ideias daninhas” (Identificação botânica, p.13).

É nesse exercício de aproximação de opostos que se desenvolve boa parte da poética de Giselle Vianna. No entanto, além do exercício de contrastes e metáforas, sua poesia também se volta para a realidade crua e agressiva, para a necessidade de resistir, denunciar, gritar, como na sequência dos poemas Bem guardado, Covardia, Dark room, Violação e Dessalga, na qual encontramos os seguintes versos: “as almas mal se tocam / e os traumas já se roçam / como dois ossos” (Dark room, p.23); “foi percorrendo à força / minhas pernas / minhas coxas / foi me puxando com carinho / pra perto da culpa” (Violação, p.25); “não sei em que mar / vai desaguar / a minha dor cansada” (Dessalga, p.27). Em seguida, temos o poema sem título que se inicia com o verso “todo grito”, bastante significativo, pois a obra de Giselle bem se adequa a esse aspecto: uma reação em forma de poesia ante as asperezas e violências da vida, pois, afinal, “todo grito / procura um ouvido / para virar palavra” (p.29).

Adriano Lobão Aragão é autor de Destinerário (poemas e fotografias), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

AS PERSONAGENS E OS LIVROS

HERASMO BRAGA

Quem realiza leituras sabe quão transformador é o seu valor, tanto da parte de quem lê, como dos que apenas as contemplam. Mesmo quando limitada a textos meramente informativos, a leitura em algum momento provocará desconforto e um mínimo de estranheza diante da realidade. Essa percepção pode ser constatada não apenas nos indivíduos, mas também nos personagens leitores. Isso ocorre por conta das mudanças das subjetividades tanto nos sujeitos reais quanto nos ficcionais.

Reconhece-se que a ação que mais o ser humano realiza está relacionada diretamente com a interpretação. Ao se relacionar, observar, sentir, pensar, projetar, a atividade interpretativa estará não só vigente, como também acontecendo o tempo todo. Diante desse aspecto, ao atentar-se para a imprescindibilidade interpretativa do ser humano, deve-se autoquestionar acerca da qualidade dela. Dessa forma, está diretamente associada, ou seja, quanto melhor e maior for a qualidade de interpretação do sujeito, consequentemente, a vida dele acompanhará esses passos somativos. No sentido contrário, também; a precariedade de viver será a tônica. Isso ocorre pelo fato de a capacidade interpretativa estar vinculada à subjetividade dos seres. Quanto mais significativa for a interpretação, maior será a expansão das subjetividades, e, portanto, os ganhos valorativos.

O elo que une os pontos entre qualidade interpretativa, vida e subjetividades reside na expressividade dos textos literários. Aqueles dotados de maior profundidade de expressão irão promover as distensões interpretativas e ampliação de subjetividades. Essa tese pode ser demonstrável sem dificuldades nos próprios ganhos que as personagens recebem nas suas subjetividades e as transformam em meio as suas vidas ficcionais. Ao se destacar os olhos de ressaca de Capitu, importa evidenciar, como descrito pelo próprio Bentinho, o quanto ela fora uma grande leitora na infância e adolescência. Da mesma maneira, outra personagem marcante da literatura, Emma Bovary, que, ao não aceitar ter uma vida burocrática ao lado do seu marido Charles ou Carlos, a depender da tradução, desenvolve essa renúncia de ser mulher submissa, entregue apenas às questões do lar e da criação de filhos, as leituras que constantemente realizava e mesmo sendo de romances idealizados com níveis de superficialidades, despertava-lhe a sede de viver aquela intensidade de sentimentos que ele encontrava nos livros, ampliando os efeitos imaginativos. Com base nesses registros, consegue-se entender quando Leyla Perrone-Moisés, em um dos seus textos denominado “Ensino de Literatura”, enuncia entre outras coisas que: “a literatura é um instrumento de conhecimento do outro e de autoconhecimento, porque a ficção, ao mesmo tempo em que ilumina a realidade, mostra que outras realidades são possíveis”. Essas são algumas das chaves das potencialidades e riquezas na ação efetiva de conhecer o outro, ao tempo que se autoconhece, diante de uma realidade mediada pelo texto ficcional, ilumina não só uma dada realidade, mas diversas outras possíveis como deveras percebeu Capitu ao ser tão enigmática para Bentinho, e Emma tão ousada no enfrentamento de toda uma sociedade moralista de plena limitação dos desejos femininos.

Outro personagem que goza de formação cultural diferenciada e, a partir da leitura de uma obra, disponibiliza-se a ter o que antes seria apenas ideias e agora sente a coragem de exercer uma vida plena hedonista é Dorian Gray, personagem do romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray. Diante da história lida em que admira o personagem: “O herói, o magnífico jovem parisiense em quem os temperamentos romântico e científico se mesclavam de modo estranho, tornou-se para ele uma espécie de protótipo de si mesmo. E, de fato, o livro todo parecia conter a história de sua própria vida, escrita antes que ele a tivesse vivido”. Destarte, Dorian tomado pelo impulso motivador, transforma-se radicalmente ao ponto de também ter todas as vivências possíveis, como de fato, efetivou. E como descreve o narrador: “Durante anos Dorian Gray não conseguiu se livrar da influência do livro. Ou talvez fosse mais apropriado dizer que ele nunca tentou se livrar dela”. Esse despertar e transformação de vida de Dorian Gray demonstra a vitalidade de como a leitura incide sobre as subjetividades dos sujeitos, muitas vezes, quando se é permitido, de maneira arrebatadora, proporcionando novas formas de vivências antes experenciadas nas leituras, assimiladas nas subjetividades e depois por meio das ações reconfiguradas, como expressa Paul Ricoeur em sua abordagem sobre mimeses III, que elevam a novas formas de vida antes restritas nas leituras agora investidas em suas vidas. Sejam das personagens, sejam dos seres reais.

Essa incursão inquietante, quando em meio às narrativas se deparam com narradores ficcionais, lançarem-se em despertar promovido por personagens, significa muito mais do que apenas uma revelação da complexidade e amplitude que os textos ficcionais provocam. Observa-se nas passagens de No Caminho de Shaww, de Marcel Proust, a seguinte menção em torno dessas assertivas: “Depois desta crença central que, durante a leitura, executava movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade, vinham as emoções que me dava a ação na qual tomava parte, pois as tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Eram os acontecimentos que ocorriam no livro que estava lendo; é verdade que as personagens a quem interessavam não eram ‘reais’, como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou a desgraça de uma personagem real só ocorrem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou dessa desgraça; a engenhosidade do primeiro romancista consistiu em compreender que, no aparelho das nossas emoções, sendo a imagem o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, em grande parte só o percebemos através dos sentidos, isto é, permanece opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não consegue erguer”. Esse olhar diferenciado a partir do olhar da personagem que sofre modificações e vivencia experiências por meio de outras personagens das histórias que ele lê e por meio da sua elevação, também, os sujeitos leitores que se encontram em orientação desse olhar proporcionalmente alçam suas performances perceptivas. Tensões emocionais sentidas nas leituras, muito mais do que em inúmeras vidas inteiras, são modificadoras do sujeito leitor, personagem da intriga e também do sujeito leitor real. Aguçam-se as sensações e se distanciam das limitações e superficialidades da vida comum, preenchendo o que é desprovido de vida, recheando de intensidades formativas que elencam o espírito.

Interessante que essa dimensionalidade de ampliação do espírito pelo exercício do desenvolvimento formativo, acontece, conforme Goethe em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, porque lançar-se no mundo ficcional, como bem expressa até então conhecido personagem eclesiástico em diálogo com Wilhelm, “é o melhor meio de arrancar os homens de si mesmos e trazê-los de volta por um desvio”. Então, é sair do mundo ordinário e imergir em outro das personagens que se encontram diante dos olhos e lhes tocam o espírito. Em momento posterior, Wilhelm Meister, ao refletir sobre o ganho significativo dessa jornada constitutiva, expressa-se ao amigo e agora cunhado Werner, em uma carta acerca dessa constante busca formativa por meio das experiências, principalmente as despertadas e vivenciadas ficcionalmente como nas peças teatrais e textos poéticos aos quais ele se dedica inteiramente nas leituras: “Para dizer-te em uma palavra: formar-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância. Ainda conservo essa disposição, com a diferença de que agora vislumbro com mais clareza os meios que me permitirão realizá-los. Tenho visto mais mundo que tu crês, e dele me tenho servido melhor que tu imaginas”. Destarte, nas confluências dos olhares entre leitor e personagens, personagens leitores acerca de seus personagens, são elaboradas e reelaboradas formas e concepções transformadoras tanto dos personagens em seus enredos, quanto dos sujeitos leitores, e ambos se desenvolvem e se diferenciam nas suas subjetividades no mundo da coexistência entre ficção e realidade.

Como bem enuncia Antonio Candido em sua obra Textos de Intervenção, que a literatura “exprime o homem e depois atua na própria formação do homem”. Assim, diante dessas circularidades formativas entre leitores e personagens, percebe-se a clareza da afirmação de Candido.

Herasmo Braga é professor e ensaísta

YELLOWJACKETS

WANDERSON LIMA

Edgar Morin[1] ressalta uma dualidade central nas produções da chamada cultura de massa. De um lado, os produtos da cultura massiva precisam agradar, gerar participação e engajamento, seduzir, e para isso tendem a empregar recursos redundantes, de fácil assimilação. De outro, seus criadores, muito frequentemente, querem se afirmar de forma autoral e buscam, portanto, inovar. Do choque entre o consabido e o novo, entre o clichê e a ímpeto inventivo, brotará a obra. E do teor dialético desse choque dependerá a qualidade de tal obra. Se não formos conscientes dessa dialética que está no bojo da cultura de massa iremos cair no erro comum de ou condená-la in totum ou fazer-lhe o louvor passando por cima de sua dimensão redundante, mercantil e, não raras vezes, reacionária.

Desse fato se pode extrair uma característica evidente dos produtos da cultura massiva: sua dupla visada. De um lado, o didatismo, a confirmação dos padrões consagrados; do outro, o subtexto fértil de referências a motivos míticos, intertextos com grandes obras literárias e diálogo com temas filosóficos, teológicos e científicos.

No início dos anos 60 do século XX, Edgar Morin apontou uma tendência da cultura de massa a que denominou “vulgarização ininterrupta”: um romance – ele usa como exemplo O vermelho e o negro – vira um filme aclimatado aos padrões hollywoodianos que, posteriormente, vira uma tirinha publicada em jornal. A cada releitura, testemunha-se uma “condensação agradável e simplificadora” (Morin, 1997). Esta prática de vulgarização, segundo Morin, passa por quatro operações: simplificação, modernização, maniqueização e atualização. A finalidade destas operações seria, em essência, aclimatar as obras da chamada “alta cultura” para o consumo massivo.  Ora, o atual momento da cultura popular audiovisual mostra que esta prática apontada pelo pensador francês, se não foi superada, é bastante marginal, embora ainda paute o imaginário de alguns setores da inteligência acadêmica; hoje, presencia-se  uma tendência de enfraquecimento do didatismo e da vulgarização e o incremento da complexidade narrativa, das referências a outros sistemas de pensamento, além de uma abordagem problemas do mundo contemporâneo fora de uma moldagem simplificadora e esquemática.

Steven Johnson[2] entende que esse aumento da complexidade é, em grande parte, uma resposta às exigências do público, que vai se cansando de enredos triviais, com linhas narrativas limitadas, arco dramáticos óbvios e poucas camadas de significação. Para Johnson, “de acordo com quase todos os critérios usados para medir os benefícios cognitivos da leitura – atenção, memória, capacidade de seguir enredos etc. –, a cultura popular não literária vem se tornando cada vez mais desafiadora nos últimos trinta anos” (Johnson, 2012). Por que esta percepção é menos óbvia do que parece? A resposta talvez esteja em uma frase de Marshall Mcluhan citada por Johnson: ““Quem estuda a mídia logo passa a esperar que, em qualquer período, as novas mídias sejam classificadas como falsas por aqueles que adquiriram os padrões das mídias anteriores, quaisquer que sejam elas”.

Seriados, telenovelas, games, animações e outras produções audiovisuais, para além de serem meros inculcadores de ideologias, promovem uma pedagogia do imaginário que a escola e outras instituições educacionais nem sempre dão a devida atenção. Por meio deles, uma massa diversificada, nem sempre letrada, aprimora a “inteligência visual” (Johnson, 2012), apreende motivos míticos, arquétipos e padrões narrativos da nossa tradição narrativa e entra em contato com os grandes embates de ideias do nosso tempo.

Eis aí alguns dados para entendermos os dois modos de espectorialidade franqueados por Yellowjackets, uma dupla visada que acirra a contradição, vislumbrada por Morin nos produtos da cultura de massa, entre padronização e invenção. Mas comecemos por apresentar a série. Yellowjackets é série criada por Ashley Lyle e Bart Nickerson que estreou em 2021 e possui no momento duas temporadas. Nela, acompanhamos um time escolar de futebol feminino cujo avião cai em uma região remota enquanto viajam para um campeonato nacional. As sobreviventes enfrentam condições extremas e, ao longo de 19 meses, a luta pela sobrevivência leva ao colapso das normas sociais e morais. A série alterna entre duas linhas temporais: 1996 e 2021. Os constantes saltos de uma época a outra mantém o mistério e a tensão, convidando o público a juntar as peças do quebra-cabeça sobre o que realmente aconteceu na floresta. Sem abrir mão de certo didatismo, a série, em montagens paralelas que percorrem passado e presente, vai adicionando dados que rechaçam explicações patologizantes ou místicas sobre o comportamento das personagens. O drama e a dor se intensificam justamente por isso, porque se sabe que ali há pessoas comuns e frágeis como nós mesmos.

A dupla visada da série se elabora numa bifurcação que aponta, por um lado, para um drama adolescente feminino, regado por músicas emblemáticas do rock e pop dos anos de 1990, rostos bonitos e guerra adolescente de sexos.  Esta é a dimensão convencional e sublimadora da série, que se vende em alguns momentos, sobretudo na primeira temporada, como um drama adolescente e flerta com clichês visuais do gênero.  O outro braço dessa bifurcação é mais noturno e soturno. Seu subtexto se alimenta da releitura, em livre adaptação, do romance Senhor das moscas (1954), do prêmio Nobel William Golding[3]. No romance temos uma sociedade de garotos que ficam presos numa ilha; na releitura de Lyle e Nickerson, temos uma sociedade de garotas que ficam presas numa floresta. Em ambos os casos, o espaço (a ilha no romance, a floresta na série) funciona como um microcosmo da sociedade, no qual as normas sociais são desmanteladas e os impulsos mais sombrios emergem. A civilização é vista como uma capa muito fina que, debastada, desvela o monstro que somos e tentamos esconder. Sem as restrições da sociedade, sugerem ambas as obras, as pessoas retornam rapidamente a um estado primitivo e selvagem.

A parte a meu ver mais interessante da série, e que mereceria uma análise demorada, diz respeito à reflexão sobre o papel da religião no processo de enfrentamento do mundo natural e na regulação da violência. Ilhadas na floresta, enfrentando a fome e o medo primal da Natureza, as garotas instituem uma religião sacrificial, na qual a Deusa ou Grande Mãe, estudada em obra clássica de Erich Neumann[4], é tanto a divindade acolhedora como a devoradora impiedosa. A única garota que se opõem a este regresso à religião natural, católica confessa, morre exatamente nos céus (isto é, numa simbólica ascensão espiritual, afastada das forças ctônicas e naturais), tentando pilotar um pequeno avião em busca de ajuda, mas que acaba explodindo. Simbolicamente falando, o sacrifício crístico não redime a comunidade, que emerge cada vez mais nos domínios da Deusa. Ora, retomar uma religião da natureza, embebida de animismo, implica não só a descoberta de um modo de conjurar os poderes da Mãe Natureza, mas também adotar uma nova hierarquia espiritual, que se chocará com a liderança baseada em outras habilidades de sobrevivência, dividindo o grupo.

À medida que o inverno avança e a liderança secular não consegue cumprir com o seu papel de trazer alimento, a liderança religiosa, mediadora das vontades da Grande Mãe, cresce em domínio sobre o grupo. E entre vantagens e desvantagens desse novo domínio, é evidente, na ótica da série, um declínio dos padrões de civilidade e um retorno ao estado de natureza como queda na barbárie. Sob os auspícios da Deusa, o sacrifício regula a ordem do Cosmos e da sociedade, e não demora para, num processo de degradação ou regressão, o canibalismo ser introduzido ali – em parte pela fome, em parte para apaziguar a Grande Mãe e restabelecer o equilíbrio social.

Quando o grupo consegue sair da floresta, as personagens carregam o trauma psíquico da experiência, trauma este, como bem sabia Walter Benjamin[5], impossível de ser narrado e produzir experiência. Assim, as garotas, agora mulheres, retornam à civilização como os soldados alemães, segundo Benjamin, retornaram da Primeira Grande Guerra: silentes, sem um saber partilhável. Fora o trauma inenarrável, elas também precisam abandonar a Deusa e reintroduzir-se na ordem ética antissacrificial e humanista (portanto, contranatural) da cultura patriarcal cristã. Mas, será que a Deusa aceita tal abandono? Que preço pagamos quando a luta pela sobrevivência nos faz regredir ao estado de natureza? A que mundo elas pertencem, ao da floresta ou ao da civilização? A posição das personagens lembra não apenas a dos soldados que retornam da guerra, mas também dos povos colonizados que revolvem morar na metrópole: como apagar a vivência “selvagem” anterior? E por que mesmo apagá-la?

Yelowjackets explora com destemor e sutileza as ambiguidades do feminino, sua face acolhedora e sua face devoradora. A floresta, na série, é um campo de teste que potencializa o caráter inóspito dos desafios que implicam a passagem da puberdade para o mundo adulto. Mas a não-floresta, isto é, o mundo supostamente civilizado, também é uma selva que domestica e tolhe o feminino, exige a superação do trauma sem dar as condições necessárias e, para piorar, muitas vezes transforma essa vivência traumática em espetáculo midiático. Por fim, fora a dificuldade de readaptação, o eco da Grande Mãe colou-se tanto nas memórias conscientes quanto no substrato inconsciente das personagens. Este eco é a rasura e o ruído que impedirão o gozo do que chamaríamos uma vida normal. No fundo, a série é mais pessimista que o romance, que tampouco é otimista, porque parece não haver um lugar de redenção e de paz para as mulheres, nem no seio da natureza nem no meio da civilização falocêntrica e cristã.

Wanderson Lima é professor e escritor. Doutor em Literatura Comparada pela UFRN, estuda as confluências entre mito, literatura e cinema. Publicou, entre outros, Ensaios sobre literatura e cinema (Horizonte, 2019) e a obra poética Palinódia (Elã, 2021). 

[1] MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

[2] JOHNSON, Steven. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

[3] GOLDING, William. Senhor das moscas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014

[4] NEUMANN, Erich. A Grande Mãe: um estudo sobre os arquétipos, os simbolismos e as manifestações femininas do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 2021.

[5] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

ORAÇÃO PARA DESAPARECER, de SOCORRO ACIOLI

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

“Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou”. (p.13) Com essas frases, Socorro Acioli inicia seu romance Oração para desaparecer (Companhia das Letras, 2023) de forma bastante pungente e instigante. As duas primeiras páginas são arrebatadoras e, de imediato, as incluí na minha lista de aberturas de romance que mais me agradaram. Em seguida, pela própria natureza da história a ser contada, a narrativa vai assumindo um caráter mais suave e reflexivo, acompanhando a gradativa maturação necessária à protagonista para recuperar sua força física e, principalmente, sua memória, para que possa redescobrir seu lugar no mundo.

Numa observação superficial, pode-se até supor que, em Oração para desaparecer, a escritora tenha mantido uma pegada um tanto parecida com seu livro anterior, A cabeça do santo. Novamente, uma narrativa pontuada pelo fantástico e desenvolvida a partir de um peculiar acontecimento real ocorrido no interior do Ceará, sua terra natal. Em A cabeça do santo, temos como ponto de partida a escultura de Santo Antônio, com sua gigantesca cabeça separada do corpo, na cidade de Caridade, que, na obra de Socorro, transformou-se na fictícia e abandonada cidade de Candeia. Em Oração para desaparecer, temos como mote inicial a história verídica de uma igreja localizada em Almofala, distrito do município cearense de Itarema, que permaneceu soterrada por muitos anos e depois ressurgiu após o movimento das dunas que a haviam encoberto. No entanto, ainda que ambas as narrativas tenham surgido enlinhavando realidade, fantasia e ficção, são construções estéticas bem distintas em relação ao ritmo e à arquitetura narrativa. As cenas ágeis de A cabeça do santo, que em alguns trechos chegam a lembrar romances de aventura, às vezes contrastam com o tom mais reflexivo e intimista da maioria dos capítulos de Oração para desaparecer.

Socorro Acioli constrói seu romance a partir da história da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que foi soterrada pelas dunas e assim permaneceu, até ressurgir quase cinco décadas depois. De autoria desconhecida, a imagem que consta na parte interna da capa é justamente uma antiga fotografia da fachada da igreja. “Vieram para rezar a última missa, pedir a Deus que evitasse a destruição pela areia e levar as imagens. Há uma foto desse dia. Areia pela metade, as pessoas na porta, marcando o fechamento oficial.” (p.148)

Há uma crônica intitulada Areia e vento, de Carlos Drummond de Andrade, publicada em 1946, sobre a inusitada história da igreja de Almofala. Diversos elementos comentados por Drumond também estão presentes na obra de Acioli. Em depoimento concedido ao Diário do Nordeste, Socorro menciona a crônica de Drummond e sua influência no processo criativo de Oração para desaparecer. “Ele diz que no dia em que o padre Antônio Tomás foi lá tirar as imagens, uma prostituta da cidade, chamada Joana Camelo, jogou um tamanco na cabeça do sacerdote para recuperar a imagem de Nossa Senhora – que, no entendimento dela, era dos Tremembés. Ali eu tinha a personagem. Então consegui pensar na história.

A igreja começou a ser soterrada em 1897. No ano seguinte, foi feita a retirada das imagens e peças de culto, mencionadas na crônica. Há também menção a um pacto de paz não-cumprido com os Tremembés. Além disso, a própria população de Almofala também foi se retirando, aumentando ainda mais a paisagem de abandono, até que, 45 anos depois, o que restava da estrutura de alvenaria da igreja fosse desenterrada pela ação da natureza, sendo posteriormente restaurada.

Além da Almofala no Ceará, há também outra em Portugal e mais outras pelo mundo. E através do fantástico, essas diversas Almofalas podem se entrelaçar por meio da jornada de seus ressurrectos, como são chamados no livro os que ressurgem da terra, como que renascidos da morte, incluindo a protagonista, que ressurge da terra, em Portugal, muitos anos depois de seu desaparecimento no Brasil, despida, sem cabelos, sem memória e ferida. “Eu estava nua, com medo e morrendo de ódio daquela mulher me chamando de rapariga. Um sopro gelado no rosto esfriou as gotas na minha pele e parecia congelar. Ainda não enxergava bem, não ouvia com clareza, achava estranhas aquelas vozes, escutava tudo sem entender nada, delirava sobre morrer.” (p.14)

Talvez um dos maiores desafios de Oração para desaparecer tenha sido construir uma narrativa com diversos capítulos baseados quase que exclusivamente em diálogos, e é dessa forma que vamos conhecendo a vida pregressa da protagonista, Cida, que ressurge em outro continente, onde busca agora reconstruir sua vida. O uso contínuo desses diálogos se coaduna bastante com essa busca, na qual se tenta resgatar o passado através da linguagem, da verbalização. E entre esses fragmentos de passado e presente, encontramos os enlaces de Cida e Jorge, e de Joana e Miguel. Numa correlação de magia, ancestralidade e pertencimento, o livro de Acioli também é uma celebração do amor.

Penso que a autora poderia ter explorado mais a capacidade de clarividência da protagonista, sua capacidade de ver e ouvir pessoas já falecidas. Muitos desdobramentos disso poderiam ter sido explorados. Assim como alguns vaticínios em relação aos ressurrectos, incluindo a afirmação de que Cida seria a última e a primeira mulher. Mas os mistérios e as perguntas sem respostas também fazer parte da narrativa.

Curiosamente, é mencionado que a oração para desaparecer de fato existe, entre os Tremembés, mas não é a que foi publicada no livro de Socorro Acioli, este que, pela competência de sua escrita, não há de desaparecer.

Referências

ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

_________. Oração para desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

BARBOSA, Diego. “Oração para desaparecer”: Novo livro de Socorro Acioli é carta de amor à Almofala, Ceará e Portugal. In Diário do Nordeste, 09 de dezembro de 2023. Disponível em https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/oracao-para-desaparecer-novo-livro-de-socorro-acioli-e-carta-de-amor-a-almofala-ceara-e-portugal-1.3453544. Acesso em 25 de maio de 24.