WANDERSON LIMA
Edgar Morin[1] ressalta uma dualidade central nas produções da chamada cultura de massa. De um lado, os produtos da cultura massiva precisam agradar, gerar participação e engajamento, seduzir, e para isso tendem a empregar recursos redundantes, de fácil assimilação. De outro, seus criadores, muito frequentemente, querem se afirmar de forma autoral e buscam, portanto, inovar. Do choque entre o consabido e o novo, entre o clichê e a ímpeto inventivo, brotará a obra. E do teor dialético desse choque dependerá a qualidade de tal obra. Se não formos conscientes dessa dialética que está no bojo da cultura de massa iremos cair no erro comum de ou condená-la in totum ou fazer-lhe o louvor passando por cima de sua dimensão redundante, mercantil e, não raras vezes, reacionária.
Desse fato se pode extrair uma característica evidente dos produtos da cultura massiva: sua dupla visada. De um lado, o didatismo, a confirmação dos padrões consagrados; do outro, o subtexto fértil de referências a motivos míticos, intertextos com grandes obras literárias e diálogo com temas filosóficos, teológicos e científicos.
No início dos anos 60 do século XX, Edgar Morin apontou uma tendência da cultura de massa a que denominou “vulgarização ininterrupta”: um romance – ele usa como exemplo O vermelho e o negro – vira um filme aclimatado aos padrões hollywoodianos que, posteriormente, vira uma tirinha publicada em jornal. A cada releitura, testemunha-se uma “condensação agradável e simplificadora” (Morin, 1997). Esta prática de vulgarização, segundo Morin, passa por quatro operações: simplificação, modernização, maniqueização e atualização. A finalidade destas operações seria, em essência, aclimatar as obras da chamada “alta cultura” para o consumo massivo. Ora, o atual momento da cultura popular audiovisual mostra que esta prática apontada pelo pensador francês, se não foi superada, é bastante marginal, embora ainda paute o imaginário de alguns setores da inteligência acadêmica; hoje, presencia-se uma tendência de enfraquecimento do didatismo e da vulgarização e o incremento da complexidade narrativa, das referências a outros sistemas de pensamento, além de uma abordagem problemas do mundo contemporâneo fora de uma moldagem simplificadora e esquemática.
Steven Johnson[2] entende que esse aumento da complexidade é, em grande parte, uma resposta às exigências do público, que vai se cansando de enredos triviais, com linhas narrativas limitadas, arco dramáticos óbvios e poucas camadas de significação. Para Johnson, “de acordo com quase todos os critérios usados para medir os benefícios cognitivos da leitura – atenção, memória, capacidade de seguir enredos etc. –, a cultura popular não literária vem se tornando cada vez mais desafiadora nos últimos trinta anos” (Johnson, 2012). Por que esta percepção é menos óbvia do que parece? A resposta talvez esteja em uma frase de Marshall Mcluhan citada por Johnson: ““Quem estuda a mídia logo passa a esperar que, em qualquer período, as novas mídias sejam classificadas como falsas por aqueles que adquiriram os padrões das mídias anteriores, quaisquer que sejam elas”.
Seriados, telenovelas, games, animações e outras produções audiovisuais, para além de serem meros inculcadores de ideologias, promovem uma pedagogia do imaginário que a escola e outras instituições educacionais nem sempre dão a devida atenção. Por meio deles, uma massa diversificada, nem sempre letrada, aprimora a “inteligência visual” (Johnson, 2012), apreende motivos míticos, arquétipos e padrões narrativos da nossa tradição narrativa e entra em contato com os grandes embates de ideias do nosso tempo.
Eis aí alguns dados para entendermos os dois modos de espectorialidade franqueados por Yellowjackets, uma dupla visada que acirra a contradição, vislumbrada por Morin nos produtos da cultura de massa, entre padronização e invenção. Mas comecemos por apresentar a série. Yellowjackets é série criada por Ashley Lyle e Bart Nickerson que estreou em 2021 e possui no momento duas temporadas. Nela, acompanhamos um time escolar de futebol feminino cujo avião cai em uma região remota enquanto viajam para um campeonato nacional. As sobreviventes enfrentam condições extremas e, ao longo de 19 meses, a luta pela sobrevivência leva ao colapso das normas sociais e morais. A série alterna entre duas linhas temporais: 1996 e 2021. Os constantes saltos de uma época a outra mantém o mistério e a tensão, convidando o público a juntar as peças do quebra-cabeça sobre o que realmente aconteceu na floresta. Sem abrir mão de certo didatismo, a série, em montagens paralelas que percorrem passado e presente, vai adicionando dados que rechaçam explicações patologizantes ou místicas sobre o comportamento das personagens. O drama e a dor se intensificam justamente por isso, porque se sabe que ali há pessoas comuns e frágeis como nós mesmos.
A dupla visada da série se elabora numa bifurcação que aponta, por um lado, para um drama adolescente feminino, regado por músicas emblemáticas do rock e pop dos anos de 1990, rostos bonitos e guerra adolescente de sexos. Esta é a dimensão convencional e sublimadora da série, que se vende em alguns momentos, sobretudo na primeira temporada, como um drama adolescente e flerta com clichês visuais do gênero. O outro braço dessa bifurcação é mais noturno e soturno. Seu subtexto se alimenta da releitura, em livre adaptação, do romance Senhor das moscas (1954), do prêmio Nobel William Golding[3]. No romance temos uma sociedade de garotos que ficam presos numa ilha; na releitura de Lyle e Nickerson, temos uma sociedade de garotas que ficam presas numa floresta. Em ambos os casos, o espaço (a ilha no romance, a floresta na série) funciona como um microcosmo da sociedade, no qual as normas sociais são desmanteladas e os impulsos mais sombrios emergem. A civilização é vista como uma capa muito fina que, debastada, desvela o monstro que somos e tentamos esconder. Sem as restrições da sociedade, sugerem ambas as obras, as pessoas retornam rapidamente a um estado primitivo e selvagem.
A parte a meu ver mais interessante da série, e que mereceria uma análise demorada, diz respeito à reflexão sobre o papel da religião no processo de enfrentamento do mundo natural e na regulação da violência. Ilhadas na floresta, enfrentando a fome e o medo primal da Natureza, as garotas instituem uma religião sacrificial, na qual a Deusa ou Grande Mãe, estudada em obra clássica de Erich Neumann[4], é tanto a divindade acolhedora como a devoradora impiedosa. A única garota que se opõem a este regresso à religião natural, católica confessa, morre exatamente nos céus (isto é, numa simbólica ascensão espiritual, afastada das forças ctônicas e naturais), tentando pilotar um pequeno avião em busca de ajuda, mas que acaba explodindo. Simbolicamente falando, o sacrifício crístico não redime a comunidade, que emerge cada vez mais nos domínios da Deusa. Ora, retomar uma religião da natureza, embebida de animismo, implica não só a descoberta de um modo de conjurar os poderes da Mãe Natureza, mas também adotar uma nova hierarquia espiritual, que se chocará com a liderança baseada em outras habilidades de sobrevivência, dividindo o grupo.
À medida que o inverno avança e a liderança secular não consegue cumprir com o seu papel de trazer alimento, a liderança religiosa, mediadora das vontades da Grande Mãe, cresce em domínio sobre o grupo. E entre vantagens e desvantagens desse novo domínio, é evidente, na ótica da série, um declínio dos padrões de civilidade e um retorno ao estado de natureza como queda na barbárie. Sob os auspícios da Deusa, o sacrifício regula a ordem do Cosmos e da sociedade, e não demora para, num processo de degradação ou regressão, o canibalismo ser introduzido ali – em parte pela fome, em parte para apaziguar a Grande Mãe e restabelecer o equilíbrio social.
Quando o grupo consegue sair da floresta, as personagens carregam o trauma psíquico da experiência, trauma este, como bem sabia Walter Benjamin[5], impossível de ser narrado e produzir experiência. Assim, as garotas, agora mulheres, retornam à civilização como os soldados alemães, segundo Benjamin, retornaram da Primeira Grande Guerra: silentes, sem um saber partilhável. Fora o trauma inenarrável, elas também precisam abandonar a Deusa e reintroduzir-se na ordem ética antissacrificial e humanista (portanto, contranatural) da cultura patriarcal cristã. Mas, será que a Deusa aceita tal abandono? Que preço pagamos quando a luta pela sobrevivência nos faz regredir ao estado de natureza? A que mundo elas pertencem, ao da floresta ou ao da civilização? A posição das personagens lembra não apenas a dos soldados que retornam da guerra, mas também dos povos colonizados que revolvem morar na metrópole: como apagar a vivência “selvagem” anterior? E por que mesmo apagá-la?
Yelowjackets explora com destemor e sutileza as ambiguidades do feminino, sua face acolhedora e sua face devoradora. A floresta, na série, é um campo de teste que potencializa o caráter inóspito dos desafios que implicam a passagem da puberdade para o mundo adulto. Mas a não-floresta, isto é, o mundo supostamente civilizado, também é uma selva que domestica e tolhe o feminino, exige a superação do trauma sem dar as condições necessárias e, para piorar, muitas vezes transforma essa vivência traumática em espetáculo midiático. Por fim, fora a dificuldade de readaptação, o eco da Grande Mãe colou-se tanto nas memórias conscientes quanto no substrato inconsciente das personagens. Este eco é a rasura e o ruído que impedirão o gozo do que chamaríamos uma vida normal. No fundo, a série é mais pessimista que o romance, que tampouco é otimista, porque parece não haver um lugar de redenção e de paz para as mulheres, nem no seio da natureza nem no meio da civilização falocêntrica e cristã.
Wanderson Lima é professor e escritor. Doutor em Literatura Comparada pela UFRN, estuda as confluências entre mito, literatura e cinema. Publicou, entre outros, Ensaios sobre literatura e cinema (Horizonte, 2019) e a obra poética Palinódia (Elã, 2021).
[1] MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
[2] JOHNSON, Steven. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
[3] GOLDING, William. Senhor das moscas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014
[4] NEUMANN, Erich. A Grande Mãe: um estudo sobre os arquétipos, os simbolismos e as manifestações femininas do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 2021.
[5] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.